Manometria anorretal na investigação da constipação intestinal crônica da criança

Exame faz diagnóstico diferencial com doença de Hirschsprung.

A constipação intestinal crônica na infância pode ser de origem funcional, a mais frequente, ou orgânica. Caracterizada por um processo crônico de dificuldade para evacuar, a funcional envolve um círculo vicioso de dor e retenção de fezes, com consequente incontinência fecal, mas sem evidência de doença orgânica. A doença de Hirschsprung – também conhecida como aganglionose intestinal congênita ou, mais comumente, megacólon congênito –, que cursa com constipação grave e requer tratamento cirúrgico, é o principal diagnóstico diferencial da constipação funcional.

Uma parcela das crianças com constipação intestinal crônica persiste com o quadro, a despeito do tratamento convencional. A manometria anorretal vem justamente contribuir nesses casos, constituindo um recurso importante na triagem diagnóstica da doença de Hirschsprung por meio da pesquisa do reflexo inibitório retoanal, presente em indivíduos normais e ausente nos portadores da condição. Além da pesquisa desse reflexo, em crianças maiores e adolescentes, o método permite ainda avaliar outros parâmetros da função anorretal que justifiquem a perpetuação dos sintomas nos casos de constipação funcional grave. Dentre eles, destaca-se a dissinergia do assoalho pélvico (anismo), que consiste na contração paradoxal do esfíncter anal externo durante a tentativa de evacuação. Para completar, a manometria traz também informações importantes da função anorretal em pacientes com incontinência fecal de origem orgânica, como intestino neurogênico secundário a lesões medulares ou após cirurgia de malformações anorretais.


Como é feita a manometria anorretal na população pediátrica?

Como a criança precisa estar com o reto limpo, há necessidade de lavagem retal algumas horas antes do exame.

O procedimento implica a colocação de uma sonda flexível de pequeno calibre – menor que uma caneta – no canal anal e no reto, contendo sensores de pressão. Na ponta da sonda, é acoplada uma bexiga que simula a chegada de fezes no reto, permitindo, assim, a aferição das pressões na região em diferentes momentos do processo de defecação.

O exame gera certo desconforto, mas costuma ser bem tolerado e, na maioria dos casos, não requer sedação. Um fator limitante é que lactentes e crianças pequenas raramente cooperam para a realização do teste, o que pode comprometer o resultado. Por isso, a manometria anorretal na população pediátrica exige, além da expertise técnica, estratégias de entretenimento que contribuam para a colaboração dos pacientes.


Na prática clínica

Para exemplificar a importância da manometria anorretal como instrumento de triagem em crianças com constipação intestinal crônica, trazemos duas situações clínicas em que o exame contribuiu no direcionamento diagnóstico.


Caso 1

Criança de 9 anos com síndrome de Down e constipação refratária ao tratamento clínico. A manometria anorretal mostrou presença de reflexo inibitório retoanal a partir de 20 mL de ar insuflado no balão retal (figura 1), o que afastou o diagnóstico de doença de Hirschsprung.


Figura 1. Manometria anorretal com sonda de perfusão com oito canais radiais. O gráfico indica presença de reflexo inibitório retoanal nas diversas insuflações do balão retal (destacadas em azul), o qual se caracteriza pela queda da pressão anal de repouso durante as insuflações, seguida de retorno à pressão basal.


Comentário

A doença de Hirschsprung acomete 1:5.000 nascidos vivos, sendo muito mais frequente nos pacientes com síndrome de Down, nos quais apresenta incidência de 1:800 nascidos vivos. Dessa forma, a investigação é imperativa em portadores da trissomia do 21 com constipação refratária.


Caso 2

Criança de 2 anos e 7 meses, sexo masculino, com constipação refratária de início precoce, dependente do uso de laxante em doses altas e lavagens intestinais frequentes. Anteriormente ao acompanhamento atual, havia sido avaliada por outros colegas, que não acharam necessária a realização de exames mais invasivos, como a manometria anorretal, considerando que a criança apresentava ótimo estado nutricional e não tinha distensão abdominal.

A manometria anorretal apontou ausência de reflexo inibitório retoanal até 100 mL de ar insuflado no balão retal (figura 2). A biópsia retal profunda não encontrou células ganglionares, confirmando o diagnóstico de doença de Hirschsprung (megacólon congênito).


Figura 2. Manometria anorretal com sonda de perfusão com oito canais radiais. O gráfico aponta ausência de reflexo inibitório retoanal nas insuflações do balão retal com volumes elevados (80, 90 e 100 mL). Não houve queda da pressão anal de repouso durante as insuflações do balão (destacadas em rosa).


Comentário

O lactente apresentava constipação de início precoce e refratariedade ao tratamento clínico, que constituem alarme para a doença de Hirschsprung. Outros sinais incluem atraso na eliminação de mecônio, distensão abdominal, vômitos, desnutrição, fezes explosivas ao toque retal e massa abdominal palpável com ampola retal vazia.

Entretanto, deve ser ressaltado que o espectro clínico dos pacientes com megacólon congênito varia, de modo que nem sempre todos os sinais de alarme estão presentes. No caso em questão, a falta de repercussão do quadro no estado nutricional, assim como de distensão abdominal, confundiu os médicos para indicação da manometria anorretal. Quando realizado, o exame não detectou o reflexo inibitório retoanal, evidenciando a necessidade de prosseguimento na investigação. A ausência de células ganglionares na biópsia retal é o padrão-ouro para o diagnóstico de doença de Hirschsprung


Consultoria médica

Gastroenterologia e Hepatologia

Dra. Márcia Wehba Esteves Cavichio

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Dra. Patrícia Marinho Costa de Oliveira

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Dra. Soraia Tahan

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