O desafio de avaliar a função da tiroide na gestação

Alterações fisiológicas podem dificultar a interpretação dos exames no período gestacional.

O aumento da produção dos hormônios tiroidianos na gestação e sua  biodisponibilidade nesse período são fundamentais para a manutenção da  gravidez e para o desenvolvimento do feto. Alterações da função da tiroide,  como hipo ou hipertiroidismo, e a presença de anticorpos antitiroidianos na vigência ou não de disfunção da glândula podem levar a uma série de  eventos adversos tanto para a gestação, a exemplo de aborto, parto prematuro e hipertensão gestacional, quanto para o feto. Contudo, a avaliação da  função tiroidiana não é uma tarefa fácil na gravidez, pois as alterações fisiológicas do metabolismo, principalmente nas primeiras semanas gestacionais,  podem dificultar a definição dos valores de referência e a interpretação dos  exames mais usados nessa situação – no caso, o TSH e o T4 livre.

Com o propósito de sistematizar os dados da  literatura sobre o assunto e na tentativa de homogeneizar definições diagnósticas e indicações terapêuticas, várias sociedades médicas  nacionais e internacionais têm publicado consensos sobre o assunto. 

Um dos mais relevantes é o da Sociedade  Americana de Tiroide, de 2017, que apresentou  algumas modificações em relação aos anteriores, já consideradas em estudos recentes. 

Neste texto, abordamos alguns pontos contemplados no consenso e algumas de suas repercussões na prática clínica.

QUAL É O INTERVALO DE TSH  CONSIDERADO NORMAL PARA O PRIMEIRO  TRIMESTRE GESTACIONAL?

O intervalo de TSH durante a gestação é menor do que o  observado em não gestantes, especialmente no primeiro  trimestre, devido, entre outras causas, ao aumento dos níveis de beta-hCG, que age diretamente no receptor de TSH,  elevando a produção de hormônio tiroidiano e, consequentemente, reduzindo as concentrações do TSH, que podem  apresentar valores baixos e até indetectáveis (<0,01 mU/L)  no primeiro trimestre.  

Essa alteração pode levar a um dilema diagnóstico, entre um  hipertiroidismo “subclínico” transitório e fisiológico do início  da gestação e um hipertiroidismo autoimune. Um dado  importante é que esse estado de “hipertiroidismo subclínico”  não está associado a eventos clínicos adversos ao longo da  gravidez. O diagnóstico diferencial entre as duas hipóteses  diagnósticas pode ser feito com a dosagem do anticorpo  antirreceptor de TSH (TRAb), que encontra-se positivo no  hipertiroidismo de etiologia autoimune. 

A avaliação dos valores do TSH em gestantes deve considerar a presença do anticorpo antitiroperoxidase (anti-TPO),  a ingesta de iodo e o índice de massa corporal. O consenso  reforça a importância de que cada população tenha seus próprios intervalos de referência para cada trimestre da gestação.

Em consensos anteriores, entidades como a American Thyroid  Association, a Endocrine Society e a Sociedade Brasileira de  Endocrinologia sugeriam que, na ausência de um intervalo  de referência específico para uma determinada população, o  limite superior da dosagem de TSH de 2,5 mUI/L deveria ser  empregado para o primeiro trimestre. As recomendações de  2017 elevaram esse limite para 4,0 mUI/L, ou uma redução  de 0,5 mUI/L em relação ao limite superior de referência para  a população adulta. Estudos posteriores que compararam os  dois pontos de corte mostraram que os eventos adversos na  gestação realmente aparecem em pacientes com TSH acima  de 4,0 mUI/L. Entretanto, naquelas com TSH entre 2,5 e 4,0  mUI/L, os estudos mostram alguma alteração somente na  presença de anti-TPO positivo.

QUANDO REALIZAR  O RASTREAMENTO DA FUNÇÃO  TIROIDIANA NA GESTANTE?

A discussão sobre o rastreamento universal de doenças tiroidianas na gestação é recorrente e nenhum dos consensos  publicados até o momento recomenda a avaliação da função da tiroide em todas as gestantes – exceto a China, que  adota essa estratégia. A principal justificativa dos consensos  é que ainda não existem evidências dos efeitos benéficos do  tratamento do hipotiroidismo subclínico – que só seria identificado pela dosagem de TSH em todas as grávidas, ou seja,  no rastreamento universal – no controle dos eventos adver - sos maternos e fetais. De acordo com a literatura, com as estratégias atuais de triagem restrita às mulheres de alto risco  para tiroidopatia, cerca de 1% das gestantes poderia não ter  o diagnóstico de hipo ou hipertiroidismo antes da gravidez. 

O consenso de 2017 tem uma posição ambígua quanto ao  screening universal e continua recomendando a avaliação  somente das mulheres que apresentam risco de doença  tiroidiana. De qualquer forma, existe um movimento da literatura, segundo o qual o rastreio universal pode ser uma  opção mais segura quando existem condições ideais, principalmente a disponibilidade das dosagens de TSH para a  população gestante.

QUAL O MELHOR MÉTODO PARA  MENSURAR A CONCENTRAÇÃO DO  T4 LIVRE DURANTE A GESTAÇÃO?

Muitas das alterações fisiológicas que ocorrem na gravidez elevam o T4 total entre 7  e 16 semanas, que fica cerca de 50% maior  do que o nível pré-gestacional. Parte desse  aumento se deve às elevações da globulina  transportadora da tiroxina (TBG), que é estimulada pela maior concentração do estrógeno. Em paralelo, existe uma redução do  T4 livre (T4l) dosado pelos métodos indiretos, nos quais alterações da concentração  das proteínas carreadoras desestabilizam o  equilíbrio do ensaio competitivo, resultando  em valores falsamente baixos.  

O consenso de 2017 recomenda que esses ensaios sejam analisados em face de  valores de referência específicos para a  gestação, o que não é amplamente dispo - nível. Embora alguns autores mantenham  a recomendação do uso do T4l, pelo fato  de a maioria dos estudos publicados, tanto antes quanto após o consenso, terem  utilizado essa dosagem nos trabalhos, as  dosagens do T4 e do T3 totais com o uso  de valores de referência específicos para  gestantes seriam outra opção. Apesar disso, o método padrão-ouro de dosagem é  a feita por espectrometria de massas após  diálise de equilíbrio, porém ainda não amplamente utilizada.

O Grupo Fleury dispõe de um método  de dosagem de T4 livre após diálise por  espectrometria de massas (T4LMS), desenvolvido por sua área de Pesquisa &  Desenvolvimento – que tem 19 anos de  experiência nessa metodologia –, com valores de referência específicos para cada  trimestre de gestação.

Situações de  ALTO RISCO PARA  doença tiroidiana

  • História, sinais e sintomas de hipo ou hipertiroidismo 
  • História de anticorpos antitiroidianos positivos ou presença de bócio 
  • Antecedentes de irradiação de cabeça e pescoço ou história de cirurgia de tiroide 
  • Doenças autoimunes (DM1 e outras) 
  • Antecedentes de abortamento, partos prematuros ou infertilidade 
  • Gestação múltipla prévia História familiar de doença autoimune tiroidiana ou disfunção tiroidiana 
  • Obesidade grau 3 Uso de amiodarona, lítio ou administração recente de radioiodo 
  • Proveniente de área carente de iodo 
  • Idade superior a 30 anos


Ajuste da dose  de levotiroxina durante A GESTAÇÃO

Devido às alterações fisiológicas que ocorrem durante  a gestação para elevar a produção dos hormônios  tiroidianos, nas pacientes em tratamento para  hipotiroidismo, a dose de levotiroxina deve ser  aumentada em aproximadamente 30%. Na prática,  esse ajuste pode ser realizado com o dobro da dose,  duas vezes por semana. Por exemplo, a paciente que  usa 100 mcg todos os dias passaria a receber dois  comprimidos (200 mcg) aos sábados e domingos. Vale  lembrar que o aumento da dose requer avaliação com  nova dosagem de TSH após 4-6 semanas.


Referências 

1. 2017 Guidelines of the American Thyroid Association for the Diagnosis and  Management of Thyroid Disease During Pregnancy and the Postpartum. Alexander EK et  al. Thyroid. 2017 Mar;27(3):315-389 

2. Clinical guidelines: Thyroid and pregnancy - time for universal screening? Alex  Staganro-Green. Nat Rev Endocrinol. 2017, 13(4):192-194 

3. Consenso brasileiro para a abordagem clínica e tratamento do hipotiroidismo subclínico  em adultos: recomendações do Departamento de Tiroide da Sociedade Brasileira de  Endocrinologia e Metabologia. Jose A. Sgarbi e col. Arq Bras Endocrinol Metab. 2013;57/3 

4. Thyroid disease in pregnancy: new insights in diagnosis and clinical management. Tim  Korevaar e col. Nat Rev Endocrinol. 2017, 13, 610–622


CONSULTORIA MÉDICA 

Endocrinologia 

Dr. José G. H. Vieira

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Dra. Maria Izabel Chiamolera 

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Dra. Rosa Paula Mello Biscolla 

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Dr. Rui M. B. Maciel 

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