O pano de fundo dos genes nas neoplasias mielodisplásicas

Novo painel genético para neoplasias mieloides pesquisa mutações em 69 genes

Como o sequenciamento de nova geração,  combinado aos testes convencionais, tem ajudado a melhor definir o prognóstico da doença e a terapia

O CASO

Paciente do sexo feminino, 62 anos, tabagista (40  anos/maço), foi encaminhada ao hematologista para  investigação de anemia e neutropenia. O hemograma  exibia os seguintes resultados:

⊲ Hemoglobina (Hb): 8,6 g/dL. 

⊲ Volume corpuscular médio (VCM): 102 fL.

⊲ Red cell distribution width (RDW): 20%. 

⊲ Macrocitose discreta, poiquilocitose moderada. 

⊲ Glóbulos brancos (GB): 1.650/mm3 (neutrófilos:  42%; eosinófilos: 1%; basófilos: 1%; linfócitos: 50%;  monócitos: 6%), raros neutrófilos hipogranulares. 

⊲ Plaquetas = 550.000/mm3

Diante da anemia macrocítica com neutropenia  e elementos hipogranulares, da trombocitose e da  história de tabagismo, e afastadas as causas secundárias para as alterações encontradas, o hematologista levantou a hipótese de neoplasia mielodisplásica (SMD). Para tanto, solicitou ampla investigação  medular com mielograma e biópsia de medula óssea,  cariótipo e hibridação in situ por fluorescência (FISH),  cujos resultados são apresentados a seguir.

■ Mielograma: hipercelular, G:E 1,6:1. 

⊲ Série eritroide: hipercelular com macro e  normoblastos, diseritropoese moderada. 

⊲ Série granulocítica: hipercelular, disgranulopoese  discreta, 2% de blastos. 

⊲ Série linfomonoplasmocitária: normocelular. 

⊲ Série megacariocítica: hipercelular,  dismegacariopoese moderada, com elementos  mono ou hipolobulados. 

⊲ Ferro medular: presente; sideroblastos: 13%;  sideroblastos em anel: ausentes. A citomorfologia medular demonstrou alterações  de dispoese nas três séries mieloides, com porcentagem de blastos abaixo de 5%.

■ Biópsia de medula óssea: medula óssea hipercelular nas três  séries, com alterações citoarquiteturais e presença de megacariócitos hipo ou monolobulados, compatível com SMD. 

■ Cariótipo: 46,XX,del(5)(q13q33)[11]/46,XX[9]. 

■ FISH: deleção EGR1 (5q31.2) em 36% das 200 interfases e ausência de alterações nos cromossomos -7/7q, +8, 11q23, del17p  e 20q-.

O cariótipo e a FISH apresentaram a deleção intersticial (gene  EGR1) do braço longo do cromossomo 5, uma alteração clonal  bastante frequente na condição investigada. A SMD com poucos blastos e 5q- isolada se caracteriza por anemia macrocítica,  trombocitose, megacariócitos mono ou hipolobulados, deleção  5q isolada ou associada a uma outra alteração, exceto -7/7q-, e  menos de 5% de blastos. Portanto, o caso pôde ser classificado  como um subtipo de risco favorável. Contudo, chamou a atenção a displasia nas três séries mieloides, o que não é habitual  nesse subtipo. Assim, o hematologista pediu o sequenciamento  de nova geração (SNG) para neoplasias mieloides, disponível  no Fleury sob o nome de Mutmielo, que apontou a presença da  variante TP53 c.578A>G, (H193R), missense, com fração alélica  da variante (VAF) de 26%.

A DISCUSSÃO

Grupo de doenças da célula-tronco hematopoética, as  SMD se caracterizam por hematopoese ineficaz, displasia e citopenia periférica, com potencial evolução  para leucemia aguda. A etiologia é desconhecida, mas a  exposição a toxinas ambientais, derivados de petróleo  e tabagismo aumenta o risco. Em geral, a apresentação  clínica se dá pela presença de citopenias, conforme observado no presente caso.

O diagnóstico baseia-se na morfologia das células  do sangue periférico e da medula óssea, na histologia  da medula e nas alterações genéticas, que são de fundamental importância para a classificação e a estratificação de prognóstico, além de auxiliarem a escolha da  terapia. Com efeito, mutações recorrentes aparecem  em mais de 80% dos casos e contribuem para a fisiopatogenia.

De acordo com as alterações genéticas, os pacientes  têm seu risco classificado em baixo, intermediário ou  alto, com mediana de sobrevida variando desde alguns  anos a poucos meses – na ausência de terapia, essa  mediana é igual a 5,7 anos para baixo risco ante 0,4 ano  para alto risco. Para os casos de baixo risco, objetiva- -se, com o tratamento, aliviar os sintomas provocados  pela hematopoese ineficaz, principalmente a anemia,  enquanto, para os de alto risco, a meta é alterar o curso  da doença e prolongar a sobrevida.

A deleção intersticial do braço longo do cromossomo 5 é uma alteração frequente na SMD e, quando isolada ou associada a outra aberração que não envolva  -7/7q-, juntamente com anemia macrocítica, trombocitose, megacariócitos mono ou hipolobulados e menos  de 5% de blastos na medula óssea, recebe o nome de SMD com  poucos blastos e 5q- isolada, de acordo com a quinta edição da  classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), tendo  evolução relativamente benigna. Pacientes com essa alteração  apresentam boa resposta à lenalidomida, podendo se tornar  independentes de transfusão sanguínea na maioria dos casos.  A lenalidomida é um derivado da talidomida com efeito imunomodulador, com propriedades antineoplásicas, antiangiogênicas  e anti-inflamatórias. Dentre seus mecanismos de ação, promove  a apoptose da célula maligna e aumenta a imunidade.

Todavia, o caso descrito apresentava concomitantemente  uma variante no gene TP53, o qual se localiza no cromossomo  17p13.1, é um supressor tumoral e codifica uma proteína que funciona como fator de transcrição essencial para bloqueio do ciclo  celular, reparo de DNA, indução de apoptose e regulação da diferenciação celular. Em geral, mutações nesse gene se associam  a impacto negativo no prognóstico, curso agressivo e alto risco  para transformação em leucemia mieloide aguda (LMA), sendo  observadas em cerca de 20% das SMD com 5q-. Além disso, diversos estudos demonstram correlação entre mutações no TP53 e resistência à lenalidomida nesses casos.

As alterações no TP53 podem ocorrer na forma de deleção, de  mutação ou de ambas as anomalias, com maior impacto na carga alélica. De acordo com a FISH, o caso apresentado não exibia  deleção 17p/TP53. Pacientes com alteração monoalélica no TP53 têm menos citopenia e menor porcentagem de blastos quando  comparados aos bialélicos. Ademais, casos com VAF maior que  23% apresentam risco aumentado de desenlace desfavorável.  Diante do conjunto de achados no presente caso, torna-se  necessário o monitoramento da evolução clonal do TP53 para  predizer a progressão da doença.

Novo painel genético para  neoplasias mieloides pesquisa  mutações em 69 genes, além de fusões gênicas

As neoplasias hematológicas são diagnosticadas de  acordo com os critérios de classificação da OMS para  os tumores dos tecidos hematopoético e linfoide. Recentemente atualizada para sua quinta versão, tal clasificação oferece evidente refinamento dos critérios  diagnósticos, que incluem, dentre outros aspectos, características citogenéticas e moleculares distintas, baseadas em mecanismos oncogênicos estabelecidos.  De fato, nos últimos anos, a identificação de várias mutações tem modificado o diagnóstico, a estratificação  de prognóstico e a decisão de terapia dessas doenças,  com evidente benefício para os pacientes acometidos.

Nesse contexto, as técnicas de sequenciamento de  nova geração permitem a análise simultânea de mutações em múltiplos genes associados a tais quadros,  promovendo um diagnóstico mais preciso e classificação em conformidade com as novas diretrizes da OMS, bem como o direcionamento terapêutico com  novas e promissoras modalidades de medicamentos.

O painel Mutmielo, disponível no Fleury, utiliza o  SNG e possibilita a avaliação, ao mesmo tempo, de 69  genes mais frequentemente alterados nas neoplasias  mieloides, o que é feito de forma completa, em 41 genes, e apenas nas regiões hotspot, em 28 genes, além de detectar diversas fusões gênicas relevantes.

Os genes e fusões incluídos no teste foram escolhidos com base na frequência da mutação nas neoplasias mieloides (NM), na possibilidade de distinguir  o quadro entre LMA, SMD e neoplasias mieloproliferativas (NMP), na força da associação entre a alteração  genética, as funções hematopoéticas e a probabilidade de progressão leucêmica e, por fim, na disponibilidade de terapias-alvo.

Utilidade clínica na SMD

Utilidade clínica na SMD Em casos de suspeita clínica de SMD, mas sem alterações no cariótipo, entre um quarto e um terço dos  pacientes apresenta, ao menos, uma mutação relativa  à doença, dependendo do tipo ou grau de citopenia.  Casos com sideroblastos em anel devem ser investigados para mutação no SF3B1, que, quando encontrada, estabelece o diagnóstico da SMD com SF3B1 e  baixo número de blastos, com risco favorável. Entretanto, se houver concomitância de outras mutações,  tais como TP53, CBL, EZH2, RUNX1, U2AF1 e ASXL1, o  prognóstico se modifica e o paciente apresenta menor sobrevida global.

Isso significa que a análise de mutação em diversos genes pode colaborar para o diagnóstico da SMD  em estágios precoces. Algumas formas avançadas da  condição cursam com número aumentado de blastos  no sangue periférico e na medula óssea e tendem a  apresentar anomalias cromossômicas características,  que direcionam o diagnóstico. Entretanto, formas precoces com baixo número de blastos com frequência não exibem aberração cromossômica identificável.

Diante disso, diversos estudos destacam a utilidade  do Mutmielo para a procura de mutações que possam  estabelecer o diagnóstico da SMD. Algumas das alterações mais precocemente observadas nesse conjunto de doenças são as que ocorrem nos genes ASXL1,  DMNT3A, EZH2, RUNX1, SF3B1, SRSF2, TET2, U2AF1 e ZRSR2. Ademais, várias possuem relevância devido  às implicações no prognóstico e afetam desfavoravelmente a sobrevida – caso de ASXL1, KRAS, PRPF8,  RUNX1, EZH1 e TP53.

CONCLUSÃO

Graças ao conjunto de avaliações conduzidas, incluindo o Mutmielo, foi possível classificar o caso como SMD com poucos blastos  e 5q- isolada, de baixo risco. No entanto, a  presença de mutação no TP53 oferece um  impacto negativo e maior chance de transformação em LMA. Como não havia lesão  bialélica, a classificação não mudou. Mas  isso enseja um acompanhamento mais cuidadoso e o desenho de um esquema terapêutico com o objetivo de melhorar os sintomas e prolongar a sobrevida da paciente. O transplante de célula-tronco hematopoética, que antes não era cogitado, passa a entrar como alternativa no horizonte de tratamento.

Ficha técnica  

Mutmielo – Sequenciamento de nova geração  para neoplasias mieloides 

Método: SNG 

Amostra: sangue periférico ou medula óssea 

Descrição: avalia, ao mesmo tempo, 69 genes mais frequentemente alterados nas neoplasias mieloides, o que é feito de forma completa, em  41 genes, e apenas nas regiões hotspot, em 28 genes, além de detectar  diversas fusões gênicas relevantes  

Genes avaliados: 

Completos (41): ASXL1, BCOR, CALR, CEBPA, DNMT3A, ETV6, EZH2, GATA2,  JAK2, KMT2A, KRAS, MYD88, RUNX1, SRSF2, STAG2, TERT, TP53, WT1, ZRSR2 

Adicionados: ATM, BCORL1, CDKN2A, CDKN2B, CREBBP, CUX1, DDX41,  ELANE, HRAS, IKZF1, JAK3, KDM6A, NF1, PHF6, PRPF8, PTEN, RAD21, RB1,  SH2B3, STAT3, STK11, TERC 

Hotspots (28): BRAF, CBL, CSF3R, FLT3, GATA1, IDH1, IDH2, KIT, MPL,  NOTCH1, NPM1, NRAS, PTPN11, SETBP1, SF3B1, TET2, U2AF1 

Adicionados: ABL1, ANKRD26, ATRX, CBLB, CBLC, ETNK1, FBXW7, GNAS,  PDGFRA, SMC3, SRP72

Fusões gênicas: