Papel da imagem por ressonância magnética no diagnóstico diferencial das doenças desmielinizantes

A Neuroimagem identifica sinais mais específicos de doenças com apresentações semelhantes.

A esclerose múltipla (EM) é a doença desmielinizante adquirida mais prevalente em adultos. Clinicamente, caracteriza-se por sintomas neurológicos recorrentes que afetam múltiplos sistemas neurais. Embora a correta caracterização clínica de surtos neurológicos seja bastante sugestiva do quadro, esse caráter é inespecífico, podendo se sobrepor a diversas síndromes clínicas. Desde a descrição dos primeiros critérios diagnósticos de McDonald, em 2001, foram incluídos os achados de imagem por ressonância magnética (RM), hoje considerada a ferramenta paraclínica mais importante no diagnóstico da EM.

A RM possibilita confirmar a distribuição espacial (tabela 1) das placas desmielinizantes precocemente (figura 1), caracterizando-as já no momento do primeiro sintoma clínico, podendo incluir lesões sintomáticas e assintomáticas na definição de disseminação espacial. A quantidade de lesões assintomáticas ajuda também a estimar o risco de conversão para EM clinicamente definida e também para estabelecer fatores prognósticos. Nas revisões mais recentes dos critérios de McDonald (2010 e 2017), é possível caracterizar a disseminação temporal (tabela 1) da EM pela RM (figura 2), permitindo a definição do diagnóstico e autorizando o neurologista a iniciar a terapia específica mais indicada.


Critérios de McDonald que definem disseminação espacial (2017)
Uma ou mais lesões hiperintensas em T2* e, ao menos, duas das áreas típicas de EM no sistema nervoso central:
- Periventricular
- Justicacortical ou cortical
- Infratentatorial
- Medula espinhal**
*A presença ou não de realce é indiferente. | **Lesões sintomáticas podem ser incluídas na contagem.


Critérios de McDonald que definem disseminação temporal (2017)
- Uma nova lesão em T2 ou uma nova lesão com realce após a injeção de gadolínio, com relação ao exame basal, em qualquer intervalo após a primeira imagem
- Presença simultânea de uma lesão com realce* ao gadolínio endovenoso e de uma lesão sem realce
*Não há mais distinção entre lesões sintomáticas e assintomáticas, já que ambas podem ser incluídas na definição de disseminação temporal.

Adaptado de: Trompson AJ et al. Lancet Neurol 2018.

Figura 1. Locais típicos para definição de disseminação espacial em EM. Nos novos critérios de McDonald 2017, é necessário detectar lesões com alto sinal em T2 em, pelo menos, dois dos espaços encefálicos: periventricular (a), justacortical ou cortical (b), infratentorial (c) e medular (d).

Figura 2. Exemplos de disseminação temporal. (a) Imagem de paciente com exame inicial demonstra uma lesão periventricular e uma justacortical (setas). (b) A imagem provém de uma RM realizada após quatro meses, que apontou o surgimento de uma nova lesão. Nas figuras (c) e (d), verifica-se como é possível estabelecer o critério de disseminação temporal em um único exame, com a detecção de múltiplas lesões crônicas com hipersinal em T2 (c), juntamente com duas lesões agudas caracterizadas por realce pelo gadolínio (d).


Além de ser usada para a verificação dos critérios diagnósticos, a RM é imprescindível para a análise da forma das lesões de EM e para a detecção de sinais que indiquem sua típica distribuição perivenular. As sequências T2 e FLAIR com cortes finos ou volumétricas mostram-se fundamentais para a identificação de lesões ovaladas predominantemente perpendiculares à superfície ependimária e para a detecção de lesões justacorticais (figuras 3a e 3b).


Na região infratentorial e na medula espinhal, a combinação de imagens ponderadas em T2 e em densidade de prótons (DP) com cortes finos possui maiores sensibilidade e especificidade para a caracterização das placas desmielinizantes (figuras 3c e 3d). Na medula espinhal, o uso de cortes axiais é importante para definir a localização das lesões na secção transversal (figuras 3e e 3f), contribuindo, como veremos a seguir, para o diagnóstico diferencial.


Figura 3. As sequências FLAIR (a e b) são as mais utilizadas para a detecção de placas desmielinizantes da EM, uma vez que permitem observar a forma ovalada das lesões, com orientação perpendicular à superfície ependimária (a). Também possuem boa sensibilidade para identificar lesões justacorticais e eventual acometimento cortical (b). Na região infratentorial (c e d), porém, as sequências ponderadas em T2 (d) são mais sensíveis para a caracterização dessas lesões, na medida em que possibilitam detectar um número maior de lesões e com menos artefatos em relação à sequência FLAIR (c). Na medula espinhal, a sequência ponderada em densidade de prótons (e) é a mais sensível para a identificação das lesões desmielinizantes. Os cortes axiais (f) mostram-se importantes para detectar as localizações mais típicas de lesões de EM, geralmente pequenas e com localização excêntrica, na secção transversa.


Além das sequências estruturais obrigatórias no protocolo de investigação da EM, algumas sequências avançadas contribuem para ilustrar características altamente sugestivas da doença e diferenciá-las de outras situações clínicas prevalentes. A sequência de suscetibilidade magnética (SWI), por exemplo, ajuda a identificar a veia central, presente em até 90% das lesões encefálicas em pacientes com EM, em contraste com lesões associadas à doença vascular (figura 4).


Figura 4. Algumas sequências, como a técnica de suscetibilidade magnética (SWI) (a), são úteis para visualizar veias intraparenquimatosas e podem identificar a veia central (seta em a), encontrada na maior parte das lesões de pacientes com EM. Nessas imagens, confirma-se a presença de uma lesão com alto sinal em T2 na imagem FLAIR (seta em b).


A RM tem igualmente um papel fundamental no seguimento da EM, uma vez que pode detectar o surgimento de novas lesões, o crescimento de lesões existentes e ainda novas lesões com realce ao contraste paramagnético. Um dos critérios para a definição de eficácia de tratamento nos pacientes com EM inclui o conceito de ausência de sinais de atividade da doença (NEDA, do inglês, no evidence of disease activity), cuja definição abrange ausência de atividade radiológica durante avaliações consecutivas. A detecção de sinais radiológicos desfavoráveis, mesmo que assintomáticos, pode sinalizar falha terapêutica e a necessidade de uma intervenção farmacológica mais eficaz.


Novos recursos para a abordagem da esclerose múltipla

Desenvolvido pela CorTechs Labs, o LesionQuantTM é um software que, por meio dos estudos do encéfalo por ressonância magnética (RM), associa informações das sequências 3D T1 e FLAIR, permitindo a identificação e a quantificação volumétrica de lesões cerebrais, de forma rápida e completamente automatizada.

Com aplicação bem estabelecida na esclerose múltipla, a técnica permite, de modo acurado e reprodutível, uma melhor avaliação da atividade da doença, da progressão das lesões ao longo do tempo e da resposta terapêutica.

Os resultados do LesionQuantTM são disponibilizados em relatórios detalhados, otimizados e de fácil interpretação dos achados, com foco nas informações mais relevantes.

As avaliações quantitativas e longitudinais das lesões cerebrais nos pacientes com esclerose múltipla auxiliam o planejamento terapêutico e o monitoramento de progressão da doença.


Principais biomarcadores analisados

  • Número de lesões encefálicas
  • Distribuição anatômica das lesões (segmentação)
  • Alteração do número e do volume de lesões (progressão) ao longo do tempo
  • Quantificação volumétrica das estruturas encefálicas (módulo conjunto com o NeuroQuant®)


Para a realização do LesionQuantTM, é importante solicitar, no pedido médico, a inclusão da técnica ou informar a necessidade do estudo da volumetria das lesões.


Doenças do espectro da neuromielite óptica

No fim do século 19, uma entidade clínica caracterizada por neurite óptica bilateral e mielites transversas foi descrita por Eugène Devic, sendo primariamente conhecida como uma doença monofásica, a doença de Devic. Mais tarde, em meados do século 20, casos recorrentes foram descritos e, por se assemelharem a uma doença inflamatória e desmielinizante, a condição foi caracterizada como a forma opticoespinhal da EM. Contudo, a doença de Devic frequentemente apresenta uma resposta desfavorável às terapias de EM, levantando a hipótese de que essa forma clínica poderia corresponder a uma doença distinta. Em 2004, a descoberta da associação das formas opticoespinhais da EM com o anticorpo contra os canais de aquaporina-4 (AQP4-IgG) forneceu um marcador para a condição, que seria, a partir de então, denominada neuromielite óptica (NMO), uma entidade distinta da EM.


A descoberta desse biomarcador facilitou a descrição de achados de RM sugestivos de NMO. Diferentemente da EM, as lesões da NMO não possuem padrão perivenular, mas tendem a se distribuir ao redor das regiões ricas em receptores de AQP4 — em torno do canal central da medula espinhal, nas regiões subependimárias e plexo coroide, na área postrema (transição entre o canal ependimário central bulbocervical e o quarto ventrículo), nos processos astrocitários perivasculares e em diversas células das vias ópticas, da retina até a região pós-quiasmática. Essa rica distribuição dos receptores de AQP4 no sistema nervoso central explica não somente a presença de lesões encefálicas na NMO, mas também os achados de imagem sugestivos do espectro da neuromielite óptica (figura 5).

Figura 5. Distribuição de lesões sugestivas do espectro da NMO. A imagem (a) demonstra uma mielite transversa longitudinalmente extensa (LETM) com localização centromedular, ao redor do canal central da medula. Em (b), vemos uma lesão extensa na superfície ependimária, delineando o esplênio do corpo caloso e a superfície do átrio do ventrículo lateral direito. Outras localizações frequentes de lesões de NMOSD são o quiasma óptico (c), o quarto ventrículo (d) e a superfície do terceiro ventrículo (e), com acometimento da região dos tálamos e diencéfalo. A última imagem (f) demonstra um esquema, em linhas pontilhadas, de regiões ricas em receptores de AQP4.


O último consenso internacional de diagnóstico da NMO, descrito por Wingerchuck et al, em 2015, definiu o espectro da neuromielite óptica (NMOSD, do inglês, neuromyelitis optica spectrum disorders), incluindo a NMO com anti-AQP4+ e outras apresentações com achados clínicos e de imagem semelhantes, além de outras doenças autoimunes e síndromes desmielinizantes. Ainda não está totalmente esclarecido o quanto essas afecções fazem parte de uma entidade patológica única ou de um espectro amplo de doenças neurológicas. Entretanto, a acelerada descoberta de outros biomarcadores sorológicos, associados a alguns sinais de imagem distintos, está contribuindo para que novas cores dentro desse espectro possam ser identificadas, conforme ilustraremos adiante.


Anti-AQP4 e anti-MOG: novos dilemas

Estudos recentes mostram que, entre os pacientes com apresentação clássica de NMOSD, cerca de 60% a 90% têm testes sorológicos positivos para AQP4-IgG. Dentro da parcela negativa para esse anticorpo, novos marcadores têm sido testados, sendo encontradas associações com outras doenças autoimunes. Dos pacientes soronegativos para AQP4-IgG, uma parcela significativa demonstrou positividade para anticorpos contra a glicoproteína do oligodendrócito da mielina (anti-MOG-IgG ou anti-MOG, sendo MOG a sigla em inglês de myelin oligodendrocyte glicoprotein). Muitos dos aspectos de imagem dos pacientes com NMOSD anti-AQP4+ e anti-MOG+ podem ser semelhantes e superponíveis, mas estudos mais recentes têm demonstrado algumas diferenças entre os dois grupos, o que, no futuro próximo, pode ajudar a separá-los.


Nas apresentações medulares, ambos apresentam uma freqüência alta de mielites transversas longitudinalmente extensas (com extensão longitudinal igual ou superior à de três corpos vertebrais). No entanto, cerca de um terço dos pacientes anti-MOG+ pode apresentar mielites curtas únicas ou multifocais (figura 6). Do ponto de vista de localização, os indivíduos anti-MOG+ apresentam uma frequência um pouco mais elevada de lesões no cone medular no primeiro surto. Essas lesões, porém, não são patognomônicas desses pacientes. Por outro lado, pacientes com NMOSD anti-AQP4+ aparentemente têm uma freqüência maior de acometimento da área postrema. Outro achado potencialmente distintivo entre os dois quadros são as bright spotty lesions, caracterizadas por focos altamente hidratados nas lesões medulares, com sinal igual ou superior ao liquor, que parecem ser mais frequentes nos pacientes anti-AQP4+, podendo estar presentes em cerca de 30% a 50% das mielites agudas desses indivíduos.

Figura 6. Lesões medulares em um paciente com NMOSD (a) demonstram uma mielite transversa longitudinalmente extensa, com acometimento da transição bulbomedular e da área postrema. A imagem (b) mostra paciente anti-MOG+ com lesões medulares mais curtas, também acometendo a junção bulbomedular.

A análise das órbitas e dos nervos ópticos também pode fornecer potenciais sinais diferenciais dentro do espectro da NMO. De modo similar à medula, as lesões das NMOSD nos nervos ópticos costumam ser extensas – mais do que as neurites relacionadas à EM – e acometer mais da metade de sua extensão. Mas, nos pacientes anti-MOG+, existe uma frequência maior de neurites bilaterais e anteriores acometendo a porção intraorbital dos nervos ópticos. Por outro lado, os pacientes anti-AQP4+ têm uma predileção para as porções posteriores dos nervos ópticos, com acometimento das porções cisternais, quiasmáticas e pós-quiasmáticas (figura 7).

Figura 7. Neurite óptica em paciente anti-AQP4+ (a e b), apresentando hipersinal em T2 no quiasma óptico (a), com realce após a injeção do contraste paramagnético (b). Nos pacientes com NMOSD anti-MOG+ (c e d), é mais comum observar neurites bilaterais que acometem os segmentos anteriores dos nervos ópticos (c), sendo também frequente realce periférico no nervo óptico (d), caracterizando perineurite.

Apesar de as descrições mais antigas da doença de Devic ou NMO apontarem para ausência ou raridade de lesões encefálicas nesses quadros, sabe-se hoje que tais pacientes apresentam uma incidência muito baixa de lesões típicas de EM, mas podem apresentar encefalites e lesões encefálicas sugestivas de NMOSD. Surpreendentemente, em adultos, as lesões encefálicas são mais frequentes em pacientes anti-AQP4+ do que naqueles anti-MOG+. Contudo, talvez por essas apresentações serem menos frequentes do que as lesões encefálicas relacionadas à EM ou por ainda não termos estudos suficientes, os tipos de acometimento encefálicos entre as síndromes NMOSD são bastante superponíveis. Algumas lesões são sabidamente mais freqüentes em indivíduos anti-MOG+, como as de tronco encefálico, sobretudo as romboencefalites e as lesões de pedúnculo cerebelar, enquanto as subependimárias lineares extensas são bastante prevalentes nos indivíduos anti-AQP4+. No entanto, as lesões encefálicas em ambas as síndromes podem ser superponíveis e ainda não diferenciam claramente as duas entidades.


Conclusões

O conhecimento em Neuroimunologia ascendeu em ritmo acelerado nas últimas décadas. Condições que eram englobadas em um espectro nebuloso de doenças desmielinizantes ou variantes da esclerose múltipla estão sendo encaradas como entidades nosológicas distintas, o que tem contribuído para diagnósticos mais precisos e intervenções terapêuticas mais eficazes e personalizadas.

A Neuroimagem possui um papel fundamental nessa jornada por conseguir identificar sinais mais específicos, dar forma a lesões que podem ter apresentações clínicas semelhantes e identificar achados subclínicos ou assintomáticos. A RM configura um método essencial para o diagnóstico e o acompanhamento desses pacientes, servindo ainda como a ferramenta paraclínica e não invasiva mais impactante no avanço dessa área do conhecimento.


Leitura recomendada

dos Passos GR et al. MOG-IgG-associated optic neuritis, encephalitis and myelitis: lessons learned from neuromyelitis optica spectrum disorder. Front Neurol. 2018; 9: 217.

Rovira A et al. Evidence-based guidelines: MAGNIMS consensus guidelines on the use of MRI in multiple sclerosis-clinical implementation in the diagnostic process. Nat Rev Neurol. 2015: 11(8): 471-82.

Sato DK et al. Distinction between MOG antibody-positive and AQP4 antibody-positive NMO spectrum disorders. Neurology. 2014; 82(6): 474-81.

Thompson AJ et al. Diagnosis of multiple sclerosis: 2017 revisions of the McDonald criteria. Lancet Neurol. 2018; 17(2): 162-73.

 

Consultoria médica

Dra. Bruna Garbugio Dutra
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Dr. Carlos Jorge da Silva
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Dra. Carolina de Medeiros Rimkus
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Dr. Diego Cardoso Fragoso
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