A pré-eclâmpsia (PE) é uma doença específica da gestação, que ocorre em cerca de uma em cada 20 grávidas. Caracteriza-se pela presença de hipertensão arterial e proteinúria após 20 semanas, em gestante previamente normotensa. A ausência de proteinúria, mas com comprometimento sistêmico ou disfunção de órgãos-alvo, também é considerada PE. Outra situação que deve levantar essa suspeita é a associação de hipertensão arterial com sinais de comprometimento placentário (restrição de crescimento fetal, alterações dopplervelocimétricas), mesmo sem proteinúria.1-3 Segundo dados dos EUA, a hipertensão arterial ocorre em 10% das gestações e a PE incide em 2% a 8% delas.1
Etiologia
Diversas hipóteses para a patogênese da PE já foram sugeridas. A mais importante atualmente está relacionada com a placentação deficiente. A invasão trofoblástica deficiente das artérias espiraladas do útero cria um ambiente hipóxico ao nível da placenta, com liberação de radicais livres e de outras moléculas capazes de desencadear resposta inflamatória sistêmica e agressão ao endotélio vascular. Esse modelo de má adaptação placentária associa-se particularmente à PE de início precoce, antes de 34 semanas, a grande responsável pela maior parte da morbimortalidade materna e perinatal. A PE tardia está mais associada a fenômenos maternos – possivelmente vasculares – e tem sua instalação próxima ao termo.1,2
Além disso, destaca-se que, em gestantes com fatores predisponentes para PE, alterações placentárias sutis ou próximas da normalidade podem induzir a forma clínica da doença.2
Fatores de risco
Algumas características demográficas e condições clínicas e obstétricas configuram fatores de risco para o desenvolvimento de PE, em especial a história pregressa dessa condição, que eleva o risco em cerca de sete vezes, e a síndrome antifosfolípide, associada com aumento do risco em quase dez vezes.1-3
Principais fatores de risco para PE:1-3
Complicações
Os distúrbios hipertensivos da gravidez têm relação com maior morbidade, incapacidade em longo prazo e mortalidade materna e perinatal. Embora, na maioria dos casos, a evolução da PE, quando bem acompanhada, seja benigna, alguns casos podem progredir para eclâmpsia, síndrome Hellp ou outras condições clínicas graves, como acidente vascular cerebral hemorrágico, insuficiência renal, insuficiência cardíaca, insuficiência hepática, coagulopatia, edema agudo de pulmão e óbito. A PE e a eclâmpsia respondem por cerca de 10% a 15% das mortes maternas diretas, das quais 99% ocorrem em países de baixa e média renda.2
A eclâmpsia apresenta incidência de 0,1% a 2,7%, sendo considerada uma das complicações mais graves da doença. O quadro é caracterizado pela presença de convulsões tônico-clônicas generalizadas ou coma em gestantes com PE.2
Na síndrome Hellp, observa-se hemólise (presença de esquizócitos e equinócitos no sangue periférico e/ou elevação dos níveis de desidrogenase lática acima de 600 UI/L e/ou bilirrubinas indiretas acima de 1,2 mg/dL), comprometimento hepático (aumento dos valores de aspartato aminotransferase e alanina aminotransferase acima de duas vezes o valor de normalidade) e plaquetopenia (níveis de plaquetas inferiores a 100.000/mm3).2
As taxas elevadas de morbimortalidade perinatal decorrem da insuficiência placentária e da antecipação prematura do parto, necessária em muitos casos de PE.2
Utilidade da identificação dos fatores de risco
A predição da PE com base apenas na história materna apresenta limitações. Com essa avaliação tradicional, é possível reconhecer somente de 30% a 40% das gestantes destinadas a desenvolver PE precocemente, com uma taxa de 5% de falso-positivos. Por isso, outras variáveis são incorporadas a esse rastreamento atualmente. A dopplerfluxometria das artérias uterinas tem boa correlação com a intensidade da invasão trofoblástica, mas esse processo se desenvolve gradualmente até meados da gestação. Assim, muitas das pacientes que apresentam resistência elevada das artérias uterinas no primeiro trimestre acabam normalizando o fluxo no segundo. Dessa forma, há necessidade de considerar os tradicionais fatores clínicos de risco, embora eles sejam pobres isoladamente, uma vez que estão presentes em parcela significativa da população obstétrica, tendo, portanto, baixo valor preditivo positivo.1-3
Outras variáveis para o rastreamento
Assim, além da dopplerfluxometria, incorporam-se outros critérios a esse rastreamento, como pressão arterial média, índice de pulsatilidade das artérias uterinas e parâmetros bioquímicos, os quais podem identificar cerca de 90% dos casos mais graves e precoces, com taxa de falso-positivos de 10%, permitindo detectar precocemente o risco de distúrbios hipertensivos ainda no primeiro trimestre da gravidez.1,3-6
Marcadores bioquímicos
Os marcadores utilizados nesse contexto incluem a proteína A plasmática associada à gestação (PAPP-A) e o fator de crescimento placentário (PlGF), que apresentam níveis diminuídos no primeiro trimestre gestacional nas pacientes que desenvolverão PE.3-6
A PAPP-A é uma metaloproteinase derivada do sinciciotrofoblasto, que aumenta a função mitogênica dos fatores de crescimento similares à insulina por meio da clivagem do complexo formado entre estes e suas respectivas proteínas ligadoras. Acredita-se que os fatores de crescimento insulina-símile desempenhem um papel fundamental na invasão trofoblástica, o que pode constituir um racional biológico para que baixas concentrações séricas de PAPP-A se associem a uma maior incidência de distúrbios hipertensivos.3
Já o PlGF desempenha papel importante na regulação do processo de angiogênese, fundamental para o desenvolvimento adequado da placenta. Esse fator exerce sua ação por meio da ligação com o receptor de membrana 1 do VEGF, ou Flt-1, do inglês, fms-like tyrosine kinase-1. Acredita-se que os fenômenos hipóxicos ocasionem uma superprodução de um subtipo solúvel do Flt-1 (sFlt-1), o qual se liga ao PlGF e reduz sua atividade biológica.3
Uma vez que os kits laboratoriais detectam apenas a forma livre do PlGF, as inúmeras ligações com sFlt-1 explicariam a redução dos níveis séricos desse marcador nas mulheres com alta probabilidade de desenvolvimento de PE. A associação desses testes com fatores de risco materno e com a dopplervelocimetria das artérias uterinas permite predizer a ocorrência de PE precoce e de PE tardia em 92% e 50% das gestantes, respectivamente, com taxa de falso-positivo de 10%.1,3,4
O desempenho do rastreamento no primeiro trimestre, utilizando diferentes métodos de rastreamento, com dados de 61 mil gestantes, das quais 2,9% desenvolveram PE, pode ser visto na tabela 1.3
Tabela 1. Taxas de detecção, com índice de falso-positivo de 10%, de PE <37 semanas e ≥37 semanas, utilizando rastreamento no primeiro trimestre3
Método de rastreamento | PE<37 semanas | PE ≥37 semanas |
Anamnese | 44,8% | 33,5% |
Anamnese + PAM | 50,5% | 38,2% |
Anamnese + PAM + IPAU | 68,4% | 41,4% |
Anamnese + PAM + IPAU + PlGF | 74,8% | 41,0% |
Anamnese + PAM + IPAU + PlGF + PAPP-A | 74,8% | 41,3% |
IPAU: índice de pulsatilidade das artérias uterinas; PAM: pressão arterial média
Adaptado de Poon et al, 2019
Melhor período de rastreamento
A avaliação dos marcadores bioquímicos deve ser realizada entre 11 e 13 semanas de idade gestacional. A escolha desse período baseia-se não apenas nos fatores fisiopatológicos – considerando a PE precoce como um transtorno hipertensivo derivado de distúrbios da invasão trofoblástica –, mas também no momento em que se recomenda o rastreamento combinado das alterações cromossômicas no primeiro trimestre. Desse modo, dados sonográficos e laboratoriais podem ser úteis para ambas as investigações. A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia recomenda que todas as gestantes devem ser rastreadas para pré-eclâmpsia no primeiro trimestre de gravidez utilizando a combinação de fatores de risco maternos e biomarcadores – o melhor teste combinado inclui fatores de risco materno, medida da pressão arterial média, índice de pulsatilidade das artérias uterinas e PlGF, que pode ser combinado ao PAPP-A.3
A identificação de um subgrupo de risco para PE possibilita promover um seguimento pré-natal diferenciado, com diagnóstico prematuro das manifestações clínicas da doença e prevenção das suas complicações, antecipando as intervenções terapêuticas, desde a instituição de medicamentos anti-hipertensivos até a interrupção da gestação para o momento oportuno, de modo que se evite o desenvolvimento de graves complicações maternofetais.1,3
Também se destaca a possibilidade de utilização da profilaxia dessas gestantes com ácido acetilsalicílico, visto que já existem evidências de que essa estratégia pode ser benéfica, desde que instituída no fim do primeiro trimestre gestacional, segundo estudos randomizados e metanálises.1,3,7
Destaca-se que a gestação gemelar apresenta risco de três a quatro vezes maior de desenvolvimento de PE, em comparação à gravidez de feto único, e não há evidência de que o uso do ácido acetilsalicílico em gemelares previna a condição. Dessa forma, o rastreamento combinado não é recomendado em casos de gemelidade.
Conclusão
O risco de PE, particularmente a de início precoce, pode ser determinado já no primeiro trimestre por meio da associação dos fatores de risco maternos, obtidos pela história e exame físico, da análise dopplervelocimétrica das artérias uterinas e da dosagem dos marcadores bioquímicos PAPP-A e PlGF. O rastreamento no primeiro trimestre da PE é oportuno já que os dados dos exames de imagem e laboratoriais também são úteis para o rastreamento combinado das alterações cromossômicas, bem como possibilita o diagnóstico, acompanhamento e instituição da profilaxia da PE.
Consultoria Médica
Mário H. Burlacchini de Carvalho
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Luciana Carla Longo e Pereira
[email protected]
Referências bibliográficas
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3. Poon LC, Shennan A, Hyett JA, Kapur A, Hadar E, Divakar H, et al. The International Federation of Gynecology and Obstetrics (FIGO) initiative on pre-eclampsia: A pragmatic guide for first-trimester screening and prevention. Int J Gynecol Obstet. 2019;145(Suppl 1):1-33.
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Pode ser utilizada para detectar o DNA da bactéria Leptospira spp. no plasma.
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