Ressonância magnética de corpo total no diagnóstico e acompanhamento do mieloma múltiplo

Método permite detecção precoce da doença e apresenta relevância prognóstica.

O mieloma múltiplo (MM) é uma doença proliferativa de células plasmáticas monoclonais, caracterizada por infiltração primária da medula óssea e produção excessiva de imunoglobulinas monoclonais anormais1. Depois das metástases, trata-se do câncer que mais frequentemente envolve o esqueleto, a ponto de até 90% dos pacientes desenvolverem lesões ósseas durante o curso da doença.


Em quase todos os indivíduos, o MM se desenvolve a partir de uma condição pré-maligna denominada gamopatia monoclonal de significado indeterminado (GMSI ou MGUS, do inglês, monoclonal gammopathy of undetermined significance), presente em cerca de 3% a 4% da população acima de 50 anos. A taxa de progressão da GMSI para MM alcança cerca de 0,5% a 1,0% por ano. O MM assintomático (MMA ou SMM, do inglês, smouldering myeloma) constitui um estágio clínico intermediário entre a gamopatia e o câncer, no qual o risco de progressão para doença maligna nos primeiros cinco anos após o diagnóstico é maior, em torno de 10% ao ano.


Historicamente, o diagnóstico e o tratmento do MM exigiam, além da infiltração de plasmócitos clonais na medula óssea, a presença de lesões em órgãos-alvo, caracterizadas pelos critérios Crab, acrônimo, do inglês, de hipercalcemia, disfunção renal, anemia e lesões osteolíticas. No entanto, com o crescente reconhecimento de biomarcadores que podem ser usados para identificar pacientes com alto risco de progressão para MM antes do desenvolvimento de lesões graves nos órgão-alvo, os critérios diagnósticos para gamopatias monoclonais foram revisados em 2014 pelo International Myeloma Working Group (IMWG).


A revisão incluiu os biomarcadores de malignidade (plasmócitos monoclonais na medula óssea ≥60%, relação da cadeia leve afetada versus não afetada ≥100 e mais de uma lesão focal ≥5 mm na ressonância magnética) e aumentou a relevância dos exames de imagem no organograma de diagnóstico e condução desses pacientes, particularmente a ressonância magnética de corpo total, dada sua alta sensibilidade na detecção de lesões medulares.


Visão geral da ressonância de corpo total

A ressonância magnética (RM) é o melhor método de imagem para avaliar o envolvimento da medula óssea antes que o tecido ósseo mineralizado seja destruído, permitindo, assim, a detecção precoce do MM5. Sua sensibilidade e especificidade na detecção de doenças ósseas antes do tratamento variam de 68% a 100% e de 83% a 100%, respectivamente6,7. O método mostra-se mais sensível que o exame de PET-CT na detecção de envolvimento ósseo, tanto focal como difuso, e seus achados também têm relevância prognóstica. Numerosas lesões focais (>25) observadas em imagens de RM de corpo total, doença extramedular e padrão de envolvimento difuso correlacionam-se com baixa sobrevida do paciente com MM4.


O uso das sequências de difusão traz benefícios adicionais às sequências anatômicas usuais (T1 e T2), como velocidade e maior sensibilidade, dispensando o meio de contraste e a avaliação de resposta terapêutica pelo exame de PET-CT5.


A não utilização de radiação ionizante torna a RM ainda mais atrativa no seguimento dos pacientes com SMM e no controle de tratamento do MM. Sua alta sensibilidade na identificação de lesões extramedulares faz ainda do método uma alternativa na pesquisa de doença residual mínima. Além disso, é o exame de escolha na avaliação de complicações dolorosas e compressivas neurais e a melhor técnica não invasiva na diferenciação entre fraturas vertebrais benignas e patológicas.


Protocolo de aquisição

O protocolo de aquisição da RM de corpo total do Fleury dura aproximadamente 45 minutos – uma redução expressiva em relação aos últimos anos – e consiste na obtenção de imagens coronais ponderadas em T1 e imagens axiais de difusão do corpo total, em associação ainda a imagens sagitais ponderadas em T1 e STIR de toda a coluna vertebral. Não há necessidade de usar gadolínio na maioria dos casos, o qual se reserva apenas para situações clínicas específicas, como diante de extensão tumoral extraóssea e/ou compressão neural. Além da diminuição no tempo de exame, o método hoje oferece maior resolução espacial nas imagens e conforto ao paciente.


Achados de imagem

Uma vez que o MM é uma doença bastante heterogênea, essa característica também se reflete nos exames de imagem. Classicamente, existem cinco padrões de RM em tais pacientes: medula óssea aparentemente normal, infiltração medular difusa, lesões nodulares focais, infiltração difusa e lesões focais combinadas (ou sal e pimenta)8. Em geral, a sequência ponderada em T1 configura a melhor escolha para avaliação da medula óssea devido ao alto conteúdo de gordura nessa área, especialmente em idosos. A maioria das lesões causadas pelo MM tem baixa intensidade de sinal em imagens de RM ponderadas em T1, intensidade de sinal intermediário a alto nas imagens ponderadas em T2 e STIR, alta intensidade de sinal na difusão e realce nas sequências pós-contraste.


O IMWG estipula o tamanho de 5 mm como limite para definir uma lesão focal. Portanto, lesões <5 mm devem ser apenas documentadas para vigilância5. Também é importante lembrar que, na RM, o achado de duas ou mais lesões focais ≥5 mm é considerado um biomarcador de malignidade, enquanto uma única lesão osteolítica ≥5 mm exige acompanhamento em exames seriados de três a seis meses.


As imagens ponderadas em difusão (DWI) têm um papel central na avaliação do MM, visto que se trata da sequência mais sensível para a detecção de lesões ósseas focais – na sequência ponderada em T1, a identificação ocorre de maneira mais tardia ao longo da evolução da doença, em comparação à difusão11 –, além de possibilitarem a avaliação da resposta ao tratamento antes mesmo de mudanças no tamanho das lesões, dado que antes era fornecido apenas pelo exame de PET-CT.

Na avaliação do paciente com DWI, podemos igualmente lançar mão do uso de inversão da escala de cinza com projeção de intensidade máxima (MIP), resultando em maior conspicuidade das lesões (figura 1A). A reformatação das imagens de difusão coloridas também pode ser útil, especialmente aos clínicos, para uma melhor compreensão da carga tumoral (figura 1B).


Contudo, as imagens ponderadas em difusão carecem de especificidade quando seus achados são avaliados isoladamente e podem também se positivar em outras entidades e condições, como tumor ósseo benigno, medula vermelha, edema, fratura e infecção, entre outras. Assim, os achados de DWI devem ser sempre interpretados em conjunto com os das sequências convencionais e até mesmo com outros métodos de imagem, se necessário, para adicionar especificidade e evitar erros.


Figura 1. Achados em homem de 62 anos com dor nas costas, anemia e nódulo palpável na clavícula esquerda. Imagens de difusão coronal com escala de cinza invertida (A) e com reformação colorida (B) evidenciam pequenas lesões no fêmur direito (setas) e maiores lesões na clavícula e asa sacral esquerdas (pontas de setas), demonstrando também ruptura cortical e extensão extramedular.


Apesar de o IMWG ainda considerar o exame de PET-CT como o método mais apropriado para a avaliação de resposta terapêutica1, a RM de corpo total vem ganhando crescente espaço, sobretudo pelo emprego das sequências de difusão e pela ausência de radiação ionizante. Alguns trabalhos já estabeleceram que a presença de altos valores de coeficiente de difusão aparente (ADC) estão relacionados a uma boa resposta ao tratamento13,14 (figura 2). Somados a isso, critérios de resposta terapêutica já estão bem estabelecidos no MY-RADS5, guideline que também define protocolos de aquisição padronizados e relatórios estruturados.


Figura 2. Achados de imagem em homem de 37 anos com lesões ósseas na escápula e no arco costal à direita, hipercaptantes ao estudo de PET-CT (A, B, C). Após o tratamento, houve sinais de resposta, com redução do tamanho e da captação ao exame de PET-CT (D, E, F). Imagens de difusão axial com reformação colorida (G, H) e mapa ADC (I, J) também demonstram sinais de resposta terapêutica, destacando-se altos valores de ADC.


Conclusão

Considera-se a RM de corpo total a modalidade de imagem de referência na detecção do envolvimento da medula óssea no MM e na exclusão de lesões nodulares focais no MM latente, assim como no estadiamento do paciente com plasmocitoma solitário. O exame apresenta ainda relevância prognóstica e configura-se como a técnica de escolha na avaliação de complicações dolorosas, tendo papel central na diferenciação de fraturas vertebrais osteoporóticas das patológicas, além de crescente papel na avaliação da resposta terapêutica.


Referências

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CONSULTORIA MÉDICA
Dr. Alípio Gomes Ormond Filho
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Dra. Isabela Azevedo Nicodemos da Cruz
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Dr. Marcelo Astolfi Nico
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Dr. Thiago Astil Rizzetto
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