Toxoplasmose congênita

Como interpretar as sorologias durante a gestação e quando pesquisar a infecção no feto.

Considerada uma das infecções de distribuição mundial, a toxoplasmose é causada pelo protozoário Toxoplasma gondii, um parasita intracelular obrigatório e onipresente, que infecta os humanos por meio da ingestão de carne crua ou malcozida com bradizoítos do T. gondii ou de alimentos contaminados por seus oocistos, provenientes de água, solo, lixo ou caixas de areia contaminados com fezes de felinos. A mãe também transmite a doença para o feto por via transplacentária. Já a aquisição por transplante de órgãos e tecidos ou exposição laboratorial é rara.

Cerca da metade dos casos de infecção pós-natal é assintomática, embora possam se
observar manifestações leves, inespecíficas e autolimitadas, com sinais e sintomas como febre, mal-estar, cefaleia, fadiga, exantema maculopapular e linfadenopatia. A síndrome da toxoplasmose congênita, por outro lado, pode cursar com graves quadros, tanto os passíveis de detecção por meio de exames ultrassonográficos fetais quanto os vistos apenas ao nascimento ou, ainda, mais tardiamente, durante a infância.

O risco de transmissão vertical aumenta muito quando a primoinfecção da mãe ocorre durante a gestação, sendo crescente quanto maior for a idade gestacional no momento da aquisição da infecção, podendo variar de 6% a 70%. As manifestações clínicas fetais e neonatais, por sua vez, são mais frequentes e graves quando a transmissão materno-fetal se dá no início da gravidez, especialmente se a gestante não receber tratamento. Já nas situações de reinfecção por um genótipo diferente de toxoplasma ou de reativação de infecção latente na gravidez, raramente se verifica transmissão da mãe para o feto.

Epidemiologia

A toxoplasmose tem maior incidência em regiões de clima tropical. Mundialmente, há mais de 200 mil casos da forma congênita por ano e, no Brasil, as estimativas dão conta de 5-23 crianças infectadas a cada 10 mil nascidos vivos. Alguns estudos mostram soroprevalência de IgG em gestantes de cerca de 60%.

Rotina sorológica

Devido à alta prevalência da doença no Brasil, recomenda-se a triagem da infecção na gestante na primeira consulta de pré-natal, com a realização de sorologia para detecção de IgG e IgM específica, acompanhada de avidez de IgG, quando há presença de anticorpos IgM. O ideal é fazer essa pesquisa sorológica já no período pré-concepcional para que a mulher não imune que planeja engravidar adote as medidas higienodietéticas adequadas mesmo antes da concepção (box).

Interpretação dos resultados das sorologias para toxoplasmose e conduta sugerida
Sorologias
Interpretação
Conduta
IgM e IgG negativas
Gestantes suscetíveis
Fornecer orientações preventivas higienodietéticas. Repetir a sorologia a cada dois ou três meses
IgM negativa e IgG positiva
Infecção passada ou prévia à gestação
Não há necessidade de repetir a sorologia
IgM positiva e IgG negativa ou indeterminada
Infecção aguda recente ou
reação cruzada
Checar sorologias pré-gestacionais ou de gestação pregressa. Repetir o teste em duas semanas e comparar ascensão de títulos e positividade da IgG. Iniciar espiramicina (1 g por via oral, três vezes ao dia) e discutir investigação de infecção fetal por amniocentese se a IgG se tornar positiva, o que confirma a infecção aguda
IgM e IgG positivas
Infecção aguda ou infecção pregressa com IgM residual
Avaliar título da avidez da IgG para datar a infecção. Na dúvida, iniciar espiramicina


Nas gestantes suscetíveis (com pesquisa de IgM e IgG negativa), a sorologia deve ser repetida a cada trimestre ou a cada dois meses. Essas mulheres também precisam receber as orientações para a prevenção de aquisição da toxoplasmose.

Na presença de infecção, os anticorpos IgM tornam-se positivos após duas semanas e podem persistir por anos. Já os da classe IgG atingem os níveis de pico entre seis e oito semanas depois e diminuem nos dois anos seguintes, mas permanecem positivos. O teste de avidez da IgG ajuda a determinar o período da infecção: diante de alta avidez, o episódio provavelmente ocorreu há mais de 12 semanas e, diante de avidez baixa, ocorreu há menos de três meses. Assim, a presença de alta avidez de IgG no primeiro trimestre gestacional torna improvável que a mulher tenha adquirido a toxoplasmose durante a gravidez.

Diante de uma provável infecção aguda adquirida na gravidez, recomenda-se iniciar a espiramicina o mais rapidamente possível tanto em gestantes sintomáticas quanto em gestantes assintomáticas para reduzir o risco de toxoplasmose congênita, bem como proceder à pesquisa de infecção no feto (veja em confirmação diagnóstica pré-natal).

Dados sobre toxoplasmose 

Uma análise de dados de sorologias para toxoplasmose, realizadas no Grupo Fleury em gestantes, no período de 2005 a 2022, mostrou que a soroprevalência de IgG nessa população é baixa e vem caindo ao longo dos anos (figura 1). Cabe ressaltar que tal tendência pode não refletir o que ocorre na população geral, considerando que se trata de um recorte para mulheres em idade fértil de segmento socioeconômico mais alto. Por outro lado, a mediana de idade entre aquelas com IgG reagente (>6,0) tendeu a aumentar ao longo dos anos, um indicador de que a infecção deve estar ocorrendo mais tardiamente na população, além de uma possível influência da tendência de as mulheres engravidarem mais tarde.

Já na análise dos dados relativos à IgM, encontrou-se número de infecções supostamente agudas muito baixo, visto que a proporção de resultados reagentes (≥0,6) foi inferior a 2%. Ademais, dentre as pacientes com IgM reagente que realizaram o teste de avidez, a maioria (80%) apresentou avidez superior a 60%, o que apontou infecção antiga (mais que três meses), com IgM residual.

A análise conseguiu estabelecer certa correlação entre o índice observado na leitura da IgM e a respectiva avidez de IgG: a mediana da avidez foi tanto menor quanto maior o índice da IgM. Entre as gestantes com índices de IgM abaixo de 5,0, 86% apresentaram avidez compatível com infecção crônica e somente 1,9% tinha avidez baixa (<30%), sugestiva de infecção recente. A proporção de quadros agudos mostrou-se maior nas pacientes com índice igual ou superior a 5,0 e, particularmente, igual ou superior a 10,0 (39% e 58% com avidez baixa, respectivamente).

Confirmação diagnóstica pré-natal

Os achados ultrassonográficos de toxoplasmose no feto são inespecíficos e incluem ventriculomegalia, calcificações intracranianas, microcefalia, sangramento intracraniano, ascite, hepatosplenomegalia, placentomegalia, derrame pericárdico, derrame pleural, restrição de crescimento e hidropsia. A confirmação da infecção fetal, portanto, depende de amniocentese para detecção do DNA do toxoplasma por PCR no líquido amniótico, com idade gestacional >18 semanas e, pelo menos, quatro semanas após o provável momento de aquisição da infecção. A pesquisa de DNA no sangue periférico materno tem pouca utilidade, uma vez que, no momento da suspeita, geralmente já não há mais parasitemia detectável e, mesmo que o resultado seja positivo, não significa que tenha ocorrido a transmissão transplacentária.

Tratamento

Se a pesquisa de infecção fetal por PCR for negativa, a espiramicina é mantida até o fim da gestação e a gestante deve ser acompanhada com ultrassonografia mensalmente. Já se a pesquisa for positiva, a espiramicina é substituída pelo esquema tríplice (sulfadiazina 3 g/dia, pirimetamina 50 mg/dia e ácido folínico 15 mg/dia) até o parto, com acompanhamento ultrassonográfico quinzenal. A presença de soroconversão com achados de ultrassom, mesmo na impossibilidade de confi rmar infecção fetal com PCR, indica a prescrição dos três fármacos. Quando a gestante é tratada, deve-se realizar hemograma a cada 15 dias para monitorar o aparecimento de efeitos adversos de toxicidade medular, como anemia, leucopenia e plaquetopenia.

O tratamento pré-natal da toxoplasmose reduz o risco de manifestações clínicas graves e sequelas neurológicas tardias. Nos casos não tratados, o prognóstico é pior e pode haver desenvolvimento de déficit de visão, déficit neurológico e atraso no desenvolvimento.

Se a doença aguda ocorrer após 32 semanas de gestação, deve-se iniciar imediatamente o esquema tríplice, mas sem realizar a amniocentese pela elevada taxa de transmissão vertical e curto período de tempo para tratar a infecção.

Seguimento pós-pesquisa do toxoplasma no líquido amniótico
PCR no LA negativo
Manter espiramicina e USG mensal
PCR no LA positivo
• USG quinzenal
• Sulfadiazina 3 g/dia, pirimetamina 50 mg/dia e ácido folínico 15 mg/dia
• Hemograma quinzenal


Avaliação do RN de mãe com infecção recente

Cerca de 75% dos recémnascidos com toxoplasmose congênita não apresentam sinais aparentes ao nascimento. Entre os sintomáticos, a tríade clássica de manifestações inclui retinocoroidite, calcificações intracranianas e hidrocefalia. Observam-se formas graves em um terço dos casos, com as seguintes manifestações:

  • Neurológicas: micro ou macrocefalia, convulsões, nistagmo, hidrocefalia, calcificações cerebrais, meningoencefalite
  • Oftalmológicas: microftalmia, retinocoroidite, estrabismo
  • Estatura: tamanho pequeno para a idade gestacional
  • Hepatosplenomegalia
  • Linfadenopatia generalizada
  • Icterícia
  • Trombocitopenia, anemia e petéquias
  • Exantema maculopapular

Recém-nascidos a termo usualmente exibem formas mais leves da doença, enquanto os prematuros podem ter apresentações mais graves. Alguns fetos que foram afetados gravemente podem evoluir para óbito intraútero ou em poucos dias após o nascimento.

Já os assintomáticos ao nascimento, com IgM positiva ou IgG em ascensão, devem receber tratamento por três meses. O acompanhamento precisa ser frequente para avaliar o desenvolvimento neurológico e acompanhar as funções oftalmológicas e auditivas. Sequelas tardias podem ocorrer, tais como perda de visão, déficits motores, dificuldade de aprendizado, dificuldade intelectual, perda auditiva e anormalidades endócrinas.

Medidas profiláticas

As gestantes devem receber as orientações higienodietéticas para a prevenção da toxoplasmose, tais como:

  • Lavar as frutas e verduras adequadamente antes do consumo;
  • Não ingerir ovos ou carnes cruas ou malcozidas. Dar preferência às carnes congeladas;
  • Evitar o consumo de água não filtrada. A água deve ser tratada ou fervida;
  • Utilizar facas diferentes para cortar carnes, vegetais ou frutas;
  • Evitar contato com material passível de contaminação com fezes de gato, como solo, gramado e caixas de areia, ou utilizar luvas nas manipulações desses materiais;
  • Alimentar gatos domésticos com carnes bem cozidas ou rações comerciais. Lavar diariamente o local onde há depósito das fezes de gatos.

Consultoria Médica: 

Dra. Carolina Lázari
Consultora médica em infectologia
[email protected] 

Dr. Celso Granato
Consultor médico em infectologia
[email protected] 

Dra. Joelma Queiroz Andrade
Consultora médica em medicina fetal
[email protected] 

Dra. Luciana Carla Longo e Pereira
Consultora médica em medicina fetal
[email protected] 

Dr. Mário H. Burlacchini de Carvalho
Consultor médico em medicina fetal
[email protected] 

Dra. Paola Cappellano Daher
Consultora médica em infectologia
[email protected] 

Referências: 

Infecções congênitas. In: Zugaib. Tratado de Obstetrícia, 3ª ed. 2016. Kota AS, Shabbir N. Congenital toxoplasmosis. NCBI Books. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK545228/. June 26, 2023. Protoloco Febrasgo – Toxoplasmose e gravidez. N° 23, 2021.