Zika vírus: alarde justificado | Revista Médica Ed. 1 - 2016

Saiba como lidar com essa nova ameaça e diferenciá-la de outras infecções que têm o Aedes como vetor.

  

AMES CAVALLINI / SCIENCE SOURCE / LATINSTOCK


Saiba como lidar com essa nova ameaça e diferenciá-la de outras infecções que têm o Aedes como vetor.

Embora o Zika vírus tenha sido descoberto na década de 40, no continente africano, a possível gravidade da infecção por esse agente só veio à tona no Brasil em 2015, diante de uma epidemia de proporções notáveis na Região Nordeste, que hoje coloca nosso país como exportador da doença (leia boxe da pág. 21). Além da expressividade numérica – mais de 500.000 casos em 22 Estados, pela estimativa do Ministério da Saúde (MS) –, observou-se uma associação temporal com um aumento significativo no número de recém-nascidos com microcefalia, um acometimento anatômico-funcional grave e incomum do crânio e do sistema nervoso central (SNC).

Essa relação ficou ainda mais evidente quando, também no ano passado, amostras de líquido amniótico de duas gestantes com tal suspeita – ambas tiveram sintomas sugestivos da infecção no início da gravidez e seus fetos receberam o diagnóstico ultrassonográfico de microcefalia – foram positivas para o Zika. Como se não bastasse, no mesmo período pesquisadores identificaram esse vírus no sangue e no tecido do SNC de um bebê que morreu logo após o nascimento. 


Diante da relevância do quadro, ainda que as informações fossem escassas e que não houvesse dados suficientes para comprovar a ligação entre os dois eventos, o Brasil emitiu, em outubro de 2015, um comunicado formal à Organização Mundial de Saúde e à Organização Pan-Americana de Saúde, que lançaram um alerta mundial sobre a infecção e a possibilidade de existência de relação causal com os casos de microcefalia. 


O mais recente boletim publicado pelo MS informou que a Secretaria de Vigilância em Saúde recebeu os resultados referentes a mais quatro casos – dois abortamentos com malformações e dois recém-nascidos com microcefalia que faleceram nas primeiras 24 horas de vida –, os quais apresentaram amostras positivas para o vírus por diferentes técnicas realizadas pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, além de testes negativos para outras infecções sabidamente causadoras de transtornos do desenvolvimento fetal. Ademais, o Instituto Carlos Chagas – Fiocruz Paraná revelou, na segunda quinzena de janeiro, a identificação do RNA viral do Zika em células placentárias específicas. Esses quadros se somaram às demais evidências, reforçando a hipótese de associação etiológica.


Se, assim como a dengue, a prevenção da infecção pelo Zika já representa um desafio, pois grande parte das medidas surte poucos efeitos, outra preocupação da classe médica, naturalmente, é com a comprovação do diagnóstico. Diante de situações de risco ou de complicações, como confirmar uma infecção atual ou pregressa por esse vírus?


Recursos para flagrar o Zika


Considerando que a apresentação clínica dessa infecção varia e que pode se assemelhar, em grande parte, às manifestações da dengue e da febre chikungunya, entre outras doenças virais, torna-se importante, pelo menos em alguns casos, estabelecer o diagnóstico definitivo por recursos laboratoriais. Isso se aplica especialmente às gestantes e a seus contatantes com um quadro clínico compatível, tais como companheiro e filhos.


Na fase de estado da doença, após o período de incubação, mesmo em um paciente assintomático, a carga viral pode ser quantificada no sangue por reação de polimerização em cadeia em tempo real (RT-PCR), pois se encontra relativamente alta, ao redor de 103 a 105 vírus/mm3. A viremia é maior nos sintomáticos, em particular nos três a cinco dias depois do início dos sintomas, declinando no fim da primeira semana. Já na urina, o vírus é eliminado por um período superior, até a segunda ou terceira semanas de doença – por isso mesmo, o Fleury tem trabalhado na validação da técnica nesse material para ampliar as chances de confirmar o diagnóstico, especialmente em gestantes e, muito provavelmente, nos recém-nascidos infectados por via transplacentária. O método molecular mostra-se ainda bastante específico e, portanto, não apresenta reação cruzada com outras viroses, de acordo com o que o laboratório vem constatando em sua rotina. 


O Zika também pode ser encontrado no líquido amniótico. Ainda não há informações seguras, na literatura médica, com relação ao significado desse achado, mas se considera que, em suspeitas de lesões fetais consequentes a uma infecção materna, vale realizar a pesquisa de vírus nessa matriz para tornar mais provável a associação causal com o Zika e complementar a investigação de outros processos infecciosos, que devem ser excluídos.  


Passado o período de viremia, é possível proceder ao diagnóstico laboratorial de forma indireta, ou seja, pela sorologia. A partir do quinto dia, o soro do paciente apresenta anticorpos da classe IgM contra o vírus. Contudo, a interpretação isolada desse resultado requer cuidado, tendo em vista a natureza intrínseca da IgM e a semelhança estrutural entre o Zika e o vírus da dengue, o que possibilita reatividade cruzada entre os anticorpos contra esses dois agentes, assim como com outros vírus, como o Epstein-Barr e o citomegalovírus. 

Por sua vez, a presença de anticorpos específicos da classe IgG, cerca de dois a quatro dias depois da detecção inicial da IgM, aumenta o valor preditivo positivo da sorologia em relação à infecção pelo Zika, enquanto a ausência de soroconversão em amostras pareadas, com intervalo de uma semana, sugere mais fortemente que se trate de doença ocasionada por outro agente. Embora a produção de IgM se mantenha por poucas semanas, a positividade da IgG permanece por tempo mais prolongado – por anos até. Nesse sentido, na suspeita de infecção aguda, convém colher a amostra para sorologia a partir de sete dias depois do início dos sintomas, a fim de flagrar a presença de ambas as classes de anticorpos específicos. Por outro lado, a pesquisa de IgG para corroborar a hipótese de uma infecção pregressa pode ser feita a qualquer tempo. 


Quando usar exames de imagem 

Os relatos de associação entre a infecção materna por Zika vírus e as malformações fetais relacionam-se principalmente às lesões do SNC. Além da microcefalia, definida pela medida da circunferência craniana abaixo de dois desvios-padrão para a idade gestacional, observam-se ainda lesões destrutivas graves, que envolvem atrofia cerebral, calcificações da substância branca, do núcleo caudado e do cerebelo, disgenesia do vérmis cerebelar e do corpo caloso e redução dos giros cerebrais (lisencefalia). Todas elas podem ser diagnosticadas pela ultrassonografia de segundo e terceiro trimestres, razão pela qual se recomenda que as gestantes com suspeita ou confirmação de infecção por Zika vírus realizem acompanhamento ultrassonográfico seriado em busca de tais condições. Em casos duvidosos, a ressonância magnética do encéfalo fetal pode contribuir para o esclarecimento diagnóstico, por se tratar de um método seguro na gestação e de alta sensibilidade para detectar malformações relacionadas ao desenvolvimento do tubo neural.


O que já sabemos sobre o agente da vez


Constituído por RNA e integrante da família dos Flavivirus, que também inclui os agentes da dengue e da febre amarela, bem como o vírus do Nilo Ocidental, entre outros, o Zika é transmitido principalmente pela picada de mosquitos infectados do gênero Aedes. No Brasil, como era de esperar, a espécie mais comum – e mais importante para a expansão da epidemia – é o A. aegypti


Convém ponderar que a carga viral em quantidades infectantes também já foi demonstrada na saliva e em outros fluidos corporais humanos, havendo igualmente casos de provável transmissão sexual descritos. Contudo, ainda não se sabe se, no decorrer de um surto, essas vias contribuem substancialmente para a expansão da doença ou se apenas originam novas infecções de forma esporádica.


Após a picada do mosquito, especificamente, o período de incubação dura cerca de três a sete dias. Estima-se que cerca de 80% das pessoas infectadas tenham um curso clínico pouco marcante, permanecendo oligossintomáticas ou mesmo assintomáticas. Naquelas com sintomas, o quadro se caracteriza por febre baixa, mialgia e um exantema maculopapular pruriginoso, combinados a sinais de conjuntivite. Em geral, o paciente se recupera sem sequelas em cerca de três a quatro dias.


Assim sendo, a maior preocupação relativa à doença, só há pouco reconhecida, envolve mesmo a possibilidade de transmissão maternofetal e a evolução do feto para microcefalia e outras malformações ainda não bem estabelecidas, caso a infecção incida durante a gravidez, particularmente no primeiro trimestre, segundo os dados preliminares.


Pouca atenção inicial


Apesar de parecer uma novidade, o Zika vírus foi identificado de modo incidental num macaco sentinela, em 1947, em Uganda, mais precisamente na floresta de Zika – daí o seu nome –, porém não recebeu muita atenção da comunidade médica na ocasião, nem duas décadas mais tarde, quando a Nigéria registrou os primeiros casos da doença em humanos. Nos anos que se seguiram, pequenos surtos ocorreram na Malásia e na Indonésia, sempre acometendo poucos indivíduos da população local, assim como alguns turistas que visitavam esses países. O fato é que, como se tratava de um quadro leve do ponto de vista clínico, tais casos não foram suficientes para despertar maior preocupação. 


O mundo só voltou os olhos para essa infecção em 2007, 60 anos após a descoberta do agente, quando 80% dos pouco mais de 7.000 habitantes da Ilha de Yap, na Micronésia, foram afetados pela infecção. Outros surtos expressivos foram observados a partir daí, inicialmente na região da Polinésia, com 20.000 casos estimados em 2013, até chegar à Ilha de Páscoa e, portanto, à América do Sul. No Brasil, a circulação do vírus foi comprovada pela primeira vez em abril de 2015, na Bahia, durante a investigação de pacientes com doença exantemática semelhante à dengue, mas com testes específicos negativos para tal infecção. 

Embora nenhuma associação da infecção com malformações fetais tenha sido descrita no momento das primeiras ocorrências, após o recente comunicado emitido pela OMS, as autoridades de saúde da Polinésia Francesa também registraram, de forma retrospectiva, aumento do número de casos de microcefalia coincidente com o período do surto na região.


Guillain-Barré: outra consequência?

Além da microcefalia, outra entidade clínica bem conhecida e com múltiplas possibilidades de causa apresentou incidência aumentada e coincidente, tanto do ponto de vista temporal quanto geográfico, com o surto do Zika vírus no Brasil – a síndrome de Guillain-Barré (SGB).



Doença neuromuscular de provável origem autoimune, caracterizada por paralisia ascendente iniciada nos membros inferiores, a SGB está ligada a diversas infecções virais e bacterianas. Portanto, é plausível especular que o Zika também possa desencadear esse quadro. 


No momento, diversas investigações estão em curso, sob coordenação do Ministério da Saúde, para comprovar essa relação causal, assim como para esclarecer se a SGB ocorre mais frequentemente em decorrência da infecção por Zika vírus em relação a outros agentes infecciosos. 


Estudo prevê disseminação internacional do Zika vírus

Um artigo publicado em janeiro na revista inglesa The Lancet destacou a preocupação das autoridades mundiais de saúde em relação à disseminação do Zika para o mundo, a partir do Brasil. 


O trabalho analisou, especialmente nas Américas, as áreas de maior risco para a instalação do agente e a evolução para transmissão autóctone da infecção. Para tanto, estudou as rotas aéreas dos aviões que partem de aeroportos brasileiros próximos às regiões onde há transmissão potencial do vírus durante o ano todo e os principais destinos dos viajantes desses locais. Foram consideradas áreas de risco para o desenvolvimento de epidemias aquelas que recebem tais viajantes e constituem nichos dos mosquitos Aedes aegypti e A. albopictus, além de possuírem condições geoclimáticas favoráveis à instalação do agente. 


Segundo os pesquisadores, países como EUA, Argentina e Itália merecem atenção, já que estão entre os principais destinos dos brasileiros procedentes de áreas de risco e apresentam mais de 60% da população residindo em locais com potencial para a transmissão autóctone sazonal do vírus. México e Colômbia também foram citados, dado o número considerável de habitantes em regiões em que a transmissão do vírus seria possível o ano todo.



 

Fonte: Lancet 2016; 387 (10016): 335-6.

LEGENDA:


Risco de transmissão local do Zika vírus:

- Não há risco

- Sazonal

- Durante o ano todo


Número de viajantes *:

1.001 – 10.000

10.001 – 50.000

50.001 – 150.000

150.001 – 300.000

>300.000


* Estimativa do número de viajantes procedentes de áreas de risco do Brasil no período de um ano, de acordo com dados coletados entre setembro de 2014 e agosto de 2015.


  

Fêmea do A. aegypti, que carrega também o Zika vírus

MARTIN DOHRN/SPL/LATINSTOCK



Principais diagnósticos diferenciais


Transmitidas pelo mesmo mosquito, as infecções provocadas pelo vírus da dengue, pelo Chikungunya e pelo Zika exibem, muitas vezes, quadros semelhantes. Uma vez que apresentam prognóstico e complicações diferentes, a definição diagnóstica é essencial para o seguimento e o manejo adequados, sobretudo nesta temporada de maior proliferação do vetor.


  


Assessoria Médica
InfectologiaDra. Carolina S. Lázari
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Dr. Celso Granato
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Medicina FetalDr. Mário Henrique Burlacchini de Carvalho
[email protected]