Bioquímica genética

Tópicos presentes neste capítulo

  • Erros inatos que afetam a função de organelas  
  • Erros inatos que levam a comprometimento específico de determinadas estruturas do cérebro  
  • Comprometimento de vias metábolicas  
  • Sumário dos exames laboratoriais realizados para a investigação de erros inatos do metabolismo  
  • Referências  

A bioquímica genética reúne os diversos testes bioquímicos que podem ser realizados para o diagnóstico de doenças genéticas. Essas doenças, em sua maior parte, são conhecidas como erros inatos do metabolismo (EIM). Graças à evolução dos conhecimentos clínicos e à incorporação de novas técnicas analíticas, o número de EIM conhecidos é superior a 400 e a maior parte deles apresenta manifestações neurológicas. Ao mesmo tempo, existem novas possibilidades terapêuticas para algumas destas doenças, o que aumenta a responsabilidade de se estabelecer um diagnóstico precoce e correto.

A melhor estratégia para o estabelecimento deste diagnóstico depende dos objetivos pretendidos. O diagnóstico pré-natal, por meio de estudos bioquímicos ou utilizando técnicas de DNA, pode ser oferecido para famílias com reconhecido risco para certas afecções genéticas. Na dependência da doença, o diagnóstico pode ser feito pelo estudo de células do líquido amniótico ou do vilo coriônico.

O diagnóstico no período neonatal, por meio dos conhecidos programas populacionais de triagem neonatal ou teste do pezinho, está indicado para todo o recém-nascido, independentemente da existência de sintomatologia clínica ou história familiar. Tem por finalidade evitar o aparecimento de doença grave e incapacitante ou de abrandar os seus efeitos. Além da já estabelecida pesquisa de hipotiroidismo e da fenilcetonúria, esta triagem pode ser estendida para diversas outras doenças, no que se conhece como triagem neonatal ampliada, que adiciona investigação para hipotiroidismo, deficiência de biotinidase, fibrose cística, galactosemias, anemia falciforme, deficiência de G-6PD. A utilização da espectrometria de massa nos programas de triagem neonatal permite ampliar ainda mais o número de doenças investigadas, detectando-se defeitos da oxidação de ácidos graxos, organoacidopatias e diversas outras aminoacidopatias, que têm sua evolução modificada com o reconhecimento precoce e implantação de terapêutica específica.

O diagnóstico bioquímico em fase sintomática, que pode ser feito em qualquer idade e permite determinar etiologia da doença e tomar, quando possível, medidas para se diminuir a intensidade dos sintomas. A partir dos dados clínicos, procura-se estabelecer o roteiro de investigação, que pode incluir desde exames bastante gerais até alguns muito específicos, que confirmam determinada doença.

Uma vez confirmado o diagnóstico bioquímico, em algumas situações particulares, pode ser oferecido o diagnóstico molecular, realizado em DNA ou RNA. No entanto, este diagnóstico está disponível apenas para um limitado grupo de doenças.

Existem diversas classificações dos erros inatos do metabolismo, nenhuma delas plenamente satisfatória. Eles podem ser agrupados de acordo com a organela que se encontra afetada (lisossomo, mitocôndria, peroxissomo), conforme o sintoma dominante (substância branca, substância cinzenta, núcleos da base) ou segundo a via metabólica que se encontra comprometida (aminoácidos, ácidos orgânicos, porfirias, etc.).


Erros inatos que afetam a função de organelas



Doenças lisossomiais

Esse é o termo utilizado para se designar o grupo de doenças que se caracteriza pelo acúmulo de determinadas substâncias dentro dos lisossomos. A doença de depósito sempre decorre de um defeito de enzima envolvida na degradação de uma molécula complexa, que pode ser um polímero de açúcar, como os glicosaminoglicanos, também conhecidos por mucopolissacárides, ou um glicolípide, composto por lípide e açúcares, recebendo denominações como esfingolipídio. O acúmulo intralisossomal destas substâncias pode levar ao comprometimento da função celular até a sua destruição. Alternativamente, um metabólito da substância acumulada pode ser tóxico para a célula. Os órgãos que mais freqüentemente são afetados pelas doenças de depósito são o cérebro, o fígado, o baço e o sistema esquelético. Entre as doenças de depósito temos a doença de Gaucher (acúmulo de glicosil-ceramida), Tay-Sachs (acúmulo de gangliosídeo monosiálico 2, ou GM2) e as diversas mucopolissacaridoses.

O diagnóstico é baseado em dados clínicos, e apoiado por dosagens bioquímicas e exames de neuroimagem. O Quadro 1 apresenta o roteiro para o diagnóstico das doenças lisossomiais e a Tabela 1 os exames laboratoriais para o diagnóstico destas patologias.

Doenças mitocondriais

As manifestações clínicas desse grupo de doenças, que comprometem a produção de ATP na mitocôndria, são bastante variáveis, e incluem, entre outros, comprometimentos neurológicos, musculares, cardíacos, endocrinológico e auditivo. Os exames bioquímicos que podem auxiliar no diagnóstico de doenças mitocondriais e contribuir com o diagnóstico diferencial são:
• Dosagem do lactato (sangue arterial ou venoso) e piruvato (sangue venoso);
• Dosagem do lactato no LCR;
• Dosagem de ácidos orgânicos urinários.

Quadro 1: Roteiro diagnóstico das lisossomopatias


Doenças peroxissomais

As doenças peroxissomais mais conhecidas são:
Síndrome de Zellweger, que apresenta comprometimento da substância branca e cinzenta do SNC e alteração da função hepática e renal. O diagnóstico bioquímico é feito pelas dosagens de ácidos graxos de cadeia muito longa e de ácido fitânico no plasma e pela determinação do plasmalogênio eritrocitário;
Adrenoleucodistrofia (ALD), de herança ligada ao cromossomo X, ocasiona graus variados de comprometimento neurológico e de insuficiência adrenal (doença de Addison). O diagnóstico é feito pela dosagem plasmática de ácidos graxos de cadeia muito longa;
Doença de Refsum, que cursa com ataxia, ictiose, neuropatia periférica e retinite pigmentar. O diagnóstico é feito pela dosagem plasmática do ácido fitânico.

Erros inatos que levam a comprometimento específico de determinadas estruturas do cérebro


Doenças da substância branca

As leucodistrofias são um grupo heterogêneo de doenças geneticamente determinadas que levam a alteração da mielinização. Os sintomas das leucodistrofias dependem da etiologia e da região comprometida, existindo grande variabilidade com relação à idade de início dos sintomas. Os exames de imagem, como a ressonância magnética e a tomografia computadorizada de crânio, contribuem para demonstrar a alteração da substância branca. O diagnóstico específico depende da realização de análises bioquímicas especiais, orientadas a partir do quadro clínico e dos exames de imagem (Quadro 2).

 
Exames disponíveis
Doença
Dosagens enzimáticas
arilsulfatase A
Leucodistrofia metacromática
Galactocerebrosidase (galactosil-ceramida b galactosidase)
Doença de Krabbe
Ensaios bioquímicos
ácidos graxos de cadeia muito longa
Doenças peroxissomiais
N-acetil-aspartato na urina
Doença de Canavan

Tabela 2: Exames disponíveis para o diagnóstico etiológico das leucodistrofias.

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Quadro 2: Roteiro para investigação diagnóstica de acidose metabólica.

Ataxias

As ataxias hereditárias, dominantes ou recessivas, podem ser decorrentes de doença metabólica ou afecção de caráter degenerativo:
Ataxias crônicas de caráter recessivo: podem ser conseqüentes a alterações do cerebelo ou da propriocepção. A idade de início é variável, sendo mais precoce na ataxia-telangiectasia (AT) e síndrome CDG (síndrome da glicoproteína deficiente em carboidrato), e mais tardia na ataxia de Friedreich e na ataxia por deficiência de vitamina E e ataxia (AVED). O diagnóstico das ataxias recessivas depende de achados clínicos (como telangiectasias oculares na AT, escoliose e pés cavos na ataxia de Friedreich) e laboratoriais (deficiência imunológica na AT, alteração do padrão de glicolização da transferrina, na síndrome CDG, deficiência de vitamina E na AVED e estudo de DNA na ataxia de Friedreich);
Ataxias de caráter dominante: compreende o grande grupo das ataxias espinocerebelares (SCA1 a SCA12). O diagnóstico dessas condições é também tratado na seção de Genética Molecular.

Doenças com manifestações predominantemente extrapiramidais

Doença de Wilson, de herança autossômica recessiva, decorre do comprometimento na excreção hepática do cobre. Com isto existe redução dos níveis plasmáticos de cobre e de sua proteína carreadora, ceruloplasmina, além de aumento do teor tecidual deste metal, inicialmente no fígado e depois em outros órgãos. As manifestações clínicas da doença de Wilson são principalmente hepáticas (cirrose) e neurológicas (lesão de núcleos da base) e passíveis de tratamento com o uso de substâncias que aumentem a excreção urinária de cobre;
Distonia responsiva a DOPA, de caráter dominante ou, mais raramente, recessivo, decorre de defeito na síntese de neurotransmissores. O seu diagnóstico bioquímico e feito pela dosagem de neurotransmissores e seus metabólitos no LCR.

Comprometimento de vias metábolicas


Defeitos da síntese e do catabolismo de aminoácidos

A maior parte dos erros inatos de aminoácidos envolve o seu catabolismo. O único defeito de síntese de aminoácidos conhecido é o que envolve a síntese da serina a partir do 3-fosfoglicerato e que cursa com redução do teor de serina no sangue. O diagnóstico e baseado na dosagem de aminoácidos, preferencialmente, no plasma e algumas vezes no LCR. Os sintomas são bastante variáveis e os principais erros inatos do metabolismo de aminoácidos são os seguintes:
Fenilcetonúria e hiperfenilalaninemias: o diagnóstico é feito através da dosagem plasmática de fenilalanina. Habitualmente, a tirosina acha-se diminuída;
Doença da urina com odor de xarope de bordo (maple syrup urine disease, MSUD):diagnosticado pela dosagem de valina, leucina e isoleucina no plasma. A dosagem de ácidos orgânicos mostra também acentuado aumento da excreção de ceto-ácidos de cadeia ramificada;
Homocistinúria, diagnosticada pela dosagem de homocisteína no sangue. Em algumas formas, há também aumento dos teores no soro e na urina de ácido metilmalônico. É importante reconhecer que a deficiência de vitamina B12 pode levar também a aumento de homocisteína e ácido metilmalônico;
Defeitos de clivagem da glicina (hiperglicinemia não cetótica), diagnosticada por meio da dosagem de glicina, simultaneamente, no plasma e no LCR. Nesse grupo de doenças, existe um aumento da correlação glicina LCR/plasma.

Defeitos no metabolismo de hidratos de carbono

GalactosemiasA galactosemia é um defeito do metabolismo da galactose que cursa, em sua forma mais comum, com hepatoesplenomegalia, atraso no crescimento, tubulopatia e cataratas. Outras formas podem ter como único sintoma a presença de catarata. O seguinte fluxograma auxilia no diagnóstico das galactosemias:
1. Pesquisa de açúcares na urina. Caso exista excreção de galactose superior a 30 mg/dL em crianças com dieta láctea, investigar;
2. Galactose total no plasma (galactose + galactose 1 fosfato). Caso anormal, investigar;
3. Atividade da galatose-1-fosfato uridiltransferase (GALT). Se necessário avaliar atividade da galactoquinase (GK) e da uridina difosfato galactose-4-epimerase. Esses dois últimos defeitos metabólicos são bastante raros.

O encontro de pequenas quantidades de galactose na urina é considerado normal. Com a introdução da triagem neonatal de galactosemia, que emprega tanto a dosagem de galactose como a pesquisa da atividade de GALT no sangue, encontrou-se grande número de indivíduos que tinham teores normais de galactose e níveis reduzidos da atividade da GALT. Na maior parte das vezes, isso é decorrente de variantes benignas (p.ex., variante Duarte) da galactosemia, e não tem significado clínico.

Defeitos do metabolismo da frutose: A frutose é um monossacarídeo que está presente em alimentos como a sacarose (açúcar de mesa) e frutas. Existem quatro EIM da frutose:
• Deficiência de frutoquinase, que é assintomática;
• A deficiência da frutose 1-fosfato aldolase, ou intolerância hereditária à frutose, onde existe hipoglicemia, vômitos e retardo no crescimento, que surgem após ingestão de frutose;
• A deficiência da frutose 1,6 difosfatase que cursa com hepatomegalia, hipoglicemia e acidose láctica e,
• A acidemia D-glicérica, cujo quadro clínico não está bem determinado, havendo indivíduos inteiramente assintomáticos, mas a maior parte das manifestações são neurológicas, com retardo do desenvolvimento neuromotor.

• Glicogenoses: Existem 11 diferentes enzimas que estão envolvidas com o metabolismo do glicogênio e que levam a manifestações hepáticas, cardíacas e musculares, isolada ou associadas. Nas formas com comprometimento hepático, observa-se hepatomegalia, hipoglicemia e acidose láctica. O comprometimento cardíaco é característico da deficiência de alfa glicosidase (doença de Pompe) e alterações musculares isoladas, caracterizadas por fadiga muscular, acidose láctica e mioglobinúria são encontradas na doença de McArdle (deficiência de miofosforilase), que pode ter seu diagnóstico reforçado por anormalidade na prova de McArdle (dosagem de amônia e lactato após exercício isquêmico). Essa mesma prova auxilia o diagnóstico de outra condição não relacionada às glicogenoses, denominada deficiência de mioadenilato deaminase, e com quadro clínico similar à deficiência de miofosforilase.

Defeitos da oxidação de ácidos graxos e da cetogênese

Esse grupo e atualmente composto por mais de 10 doenças, que têm em comum uma incapacidade de transportar ou metabolizar adequadamente os ácidos graxos ou de produzir corpos cetônicos. As doenças mais freqüentes nesse grupo são a deficiência de carnitina palmitoil transferase tipo II (CPTII) e a deficiência de desidrogenase de acil-CoA de cadeia média (MCAD). Os sintomas variam de mioglobinúria paroxística até coma e morte súbita. Muitas vezes, os sintomas emergem durante uma infecção ou jejum, podendo simular síndrome de Reye. Alteração da função hepática e hipoglicemia são achados comuns durante as descompensações clínicas. Algumas das doenças deste grupo cursam com miocardiopatia e mioglobinúria, e os exames complementares mostram anormalidades condizentes com esses sintomas.

O diagnóstico é estabelecido por meio da determinação do perfil de acilcarnitinas no plasma e de acilglicinas na urina, mesmo na ausência de descompensação clínica. Na vigência de descompensação clínica, a pesquisa de ácidos orgânicos pode sugerir esse diagnóstico. A dosagem de carnitina total e livre também ajuda o diagnóstico de algumas dessas doenças, assim como técnicas de genética molecular.

Defeitos do ciclo da uréia

A principal forma de eliminar o excesso de nitrogênio do organismo é pelo ciclo da uréia, por meio do qual se elimina a amônia. Essa substância é tóxica para o organismo e se acumula quando o ciclo da uréia está com o funcionamento comprometido. São conhecidos 5 erros inatos do metabolismo que envolvem o ciclo da uréia. Estes apresentam manifestações clínicas que variam de sonolência e coma no período neonatal até episódios intermitentes de distúrbios da consciência, muitas vezes relacionados à ingestão proteica excessiva. Em apenas uma dessas doenças, a rara deficiência de arginase, não há elevação da amônia. O diagnóstico é sugerido pelo quadro clínico e pela elevação da amônia plasmática e confirmado pela dosagem de aminoácidos plasmáticos (com especial atenção para ornitina, citrulina, arginina e ácido argino-succínico). A forma mais freqüente de defeito do ciclo da uréia é a deficiência de ornitina transcarbamoilase (OTC).

Acidoses metabólicas e organoacidopatias

Acidose metabólica: A acidose metabólica é um distúrbio freqüentemente encontrado em alguns EIM, seja pelo acúmulo de lactato, como ocorre nas doenças mitocondriais, seja pelo acúmulo de outros ácidos orgânicos. Algumas vezes, ela é persistente, mas com sinais clínicos discretos, o que dificulta o seu reconhecimento. Outras vezes, os pacientes apresentam sintomas graves, que colocam a vida em risco, e somente após a estabilização do quadro clínico percebe-se a acidose de base. A situação que mais desafia o diagnóstico é no entanto a que ocorre quando há acidose intermitente, com exames inteiramente normais no intervalo das crises.

A queda do pH pode ser decorrente a perda excessiva de bicarbonato ou por acúmulo anormal de íons H+, em geral, em associação com algum outro íon orgânico. Uma forma de determinar a quantidade de ânions não medidos, o ânion gap, é calcular a diferença entre o teor plasmático de sódio [Na+] e a soma dos teores de cloro [Cl-] e bicarbonato [HCO3-].

Ânion gap = Na+ - ( Cl- + HCO3- )
O valor do ânion gap, situa-se em geral entre 10 e 15 mEq/L. Em situações em que há perda de bicarbonato por disfunção tubular ou por diarréia crônica, o ânion gap não se altera, graças ao aumento do teor de cloro (acidose hiperclorêmica). Assim, a determinação do ânion gap permite caracterizar que tipo de acidose metabólica está presente (ver Quadro 3).

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Quadro 3: Principais acidemias orgânicas e suas respctivas deficências enzimáticas.

Organoacidopatias: As acidúrias orgânicas e as acidemias orgânicas constituem-se em um grupo heterogêneo de erros inatos do metabolismo e caracterizam-se pelo acúmulo e pelo aumento da excreção de ácidos orgânicos. Esses metabólitos não são comumente encontrados ou são detectados em quantidades muito abaixo daquelas observadas em condições patológicas.

Esse grupo de doenças tem como característica comum, a ocorrência de descompensações agudas, que podem levar à morte súbita no início da infância, ou pelo aparecimento de atraso no desenvolvimento neuromotor com episódios de descompensação metabólica intercorrente. A possibilidade de acidúria orgânica deve ser considerada em condições onde como a acidose metabólica persistente de causa desconhecida cursa com aumento do ânion gap e com distúrbios agudos da consciência. A presença de cetonúria oferece uma importante pista para o reconhecimento deste grupo de doenças. Com freqüência, existe elevação do teor de amônia, acidemia láctica e hipoglicemia.

A suspeita diagnóstica de acidemia orgânica depende do quadro clínico, da presença de anormalidades em exames como lactato, amônia e aumento do ânion gap. A dosagem de aminoácidos pode mostrar anormalidades, como elevação da glicina plasmática e urinária, mas que não são diagnósticas. O diagnóstico bioquímico depende muito da análise dos ácidos orgânicos urinários, por meio de cromatografia gasosa e/ou espectrometria de massa (GC/MS). Outras técnicas analíticas não apresentam a mesma sensibilidade e especificidade para o diagnóstico de muitas das doenças deste grupo.

A maior parte das acidúrias orgânicas atualmente conhecidas afetam o metabolismo intermediário de aminoácidos de cadeia ramificada (i.e, leucina, isoleucina e valina). Indivíduos que apresentam atividade enzimática residual podem apresentar, fora do quadro de descompensação, excreção normal de ácidos orgânicos. Desta forma, em casos de maior suspeita, estes estudos devem ser completados pela dosagem de acilglicinas na urina, por GC/MS e de acilcarnitinas no plasma, por espectrometria de massa em tandem (MS/MS). O Quadro 4 mostra as principais acidemias orgânicas.

Quadro 4: Porfirias adquiridas.

Com sintomas neuroviscerais puros
Com sintomas neuroviscerais associados a sintomas cutâneos
Intoxicação aguda por metais pesados (p. ex., chumbo)
Forma adquirida da porfiria cutânea tarda * (precipitada por álcool, hemosiderose, etc)
Forma crônica da tirosinemia tipo I
* Forma mais freqüente

Porfirias: O diagnóstico de porfiria é, freqüentemente, difícil em decorrência da variabilidade clínica e caráter muitas vezes intermitente de sintomas. Diversos exames laboratoriais estão disponíveis para o seu diagnóstico. As manifestações clínicas mais comuns neste grupo de doenças são as neuroviscerais e as cutâneas.
As manifestações neuroviscerais são de instalação aguda e caracterizam-se por dor abdominal intensa, vômitos, constipação, distúrbios psiquiátricos, convulsões, coma, neuropatia periférica e alterações autonômicas, como hipertensão e taquicardia. Caso elas não sejam adequadamente tratadas, podem apresentar evolução fatal. As manifestações cutâneas têm caráter crônico e apresentam períodos de agudização, com intensa fotossensibilidade levando ao aparecimento de erupções bolhosas em regiões expostas à luz.

As porfirias podem ser adquiridas ou hereditárias. As porfirias adquiridas, que cursam com sintomas neuroviscerais, são causadas por intoxicação por metais pesados, especialmente o chumbo, ou em conseqüência a um defeito inato do metabolismo bastante raro, a tirosinemia tipo I. A intoxicação aguda por chumbo é em geral detectada em indivíduos com exposição ocupacional a este metal e ocasiona inibição de enzima envolvida na síntese do anel porfirínico. A forma crônica da tirosinemia tipo I ocorre na infância e caracteriza-se por acúmulo de metabólitos que ocasionam sintomas hepáticos, tubolopatia renal e, da mesma forma que na intoxicação por chumbo, inibição de enzima envolvida na síntese do anel porfirínico. A forma adquirida da porfiria cutânea tarda surge na vida adulta e cursa com combinação de manifestações cutâneos e sinais de disfunção hepática. Os sintomas podem ser precipitados por ingestão de álcool, estrógenos ou por hemosiderose hepática. As porfirias hereditárias são causadas por alteração geneticamente determinada em uma das sete enzimas envolvidas na biossíntese do anel porfirínico. Existem oito formas metabolicamente distintas de porfirias hereditárias que podem cursar com três tipos de apresentação clinica: neurovisceral, cutânea e mista. As diferentes porfirias hereditárias, com destaque para as formas clinicamente mais relevantes, estão relacionadas no Quadro 5.

Quadro 5: Porfirias hereditárias.

Com sintomas neuroviscerais
Com sintomas cutâneos
Com sintomas neuroviscerais + cutâneos
Porfiria aguda intermitente *
Forma congênita de porfiria cutânea tarda
Porfiria variegata
Deficiência de ALA-dehidratase
Porfiria eritropoiética
Coproporfiria hereditária

Protoporfiria eritropoiética
Porfiria hepatoeritropoiética


* Forma mais freqüente

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Quadro 6: Roteiro inicial de investigação de pacientes com sintomas agudos de porfiria.

Diversos exames laboratoriais podem ser utilizados no diagnóstico de porfirias, mas deve-se procurar obedecer a uma seqüência lógica. Como os sintomas são intermitentes, certos exames vão ser informativos somente se realizados na fase sintomática da doença. Os testes qualitativos, como a prova de Watson-Schartz e a prova de Hoesh, em que se detecta alteração da cor da urina após a adição de um reagente, causada pela oxidação do porfobilinogênio, são pouco sensíveis e específicas. Quando positivas, devem sempre ser confirmadas por meio da dosagem de porfobilinogênio na urina.

Em paciente com sintomas neuroviscerais ativos, recomenda-se a realização de dosagem urinária de porfobilinogênio (PBG) e, se possível, de ácido delta-aminolevulínico (ALA). O PBG mostra-se elevado em todas as formas de porfiria com sintomas neuroviscerais. Quando os sintomas cutâneos estão presentes, o exame que mais auxilia o diagnóstico inicial é a demonstração da elevação das porfirias totais no plasma. O Quadro 7 mostra o roteiro para investigação diagnóstica de porfiria.

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Quadro 7: Roteiro de investigação de pacientes com sintomas agudos, com exames iniciais positivos para porfiria.

A porfiria que mais freqüentemente cursa com comprometimento neurovisceral é a porfiria aguda intermitente, que é causada pela redução da atividade da enzima PBG-deaminase eritrocitária, tanto em período sintomático quanto em fase de ausência de sintomas. Esta enzima, no entanto, pode ter sua atividade inibida por níveis elevados de chumbo ou pela succinilacetona, que é um metabólito que se acumula em pacientes com tirosinemia tipo I. A diminuição da atividade da ALA-dehidratase pode levar a manifestações idênticas a observadas na porfiria aguda intermitente.

A caracterização do tipo de porfiria cutânea depende de uma análise mais detalhada, em que se procura dosar as protoporfirinas eritrocitárias (sinonímia: zinco protoporfirinas) e as uro e coproporfirinas na urina. Recomenda-se também a dosagem de PBG e AL na urina. A seguir, pode-se realizar análises mais específicas, mensurando-se a atividade de enzimas envolvidas na síntese das porfirinas (por exemplo, uroporfirinogênio descarboxilase e uroporfirinogênio co-sintase).

Sumário dos exames laboratoriais realizados para a investigação de erros inatos do metabolismo


Diagnóstico pré-natal

Para famílias nas quais exista uma pessoa acometida por EIM, é possível, muitas vezes, o diagnóstico pré-natal para uma determinada doença. Para que este diagnóstico seja adequado, é necessário que se conheça com precisão o diagnóstico do indivíduo afetado. Dependendo da doença, o diagnóstico pode ser feito pelo estudo de células do líquido amniótico ou do vilo coriônico.

Triagem neonatal

Realizada em pequena quantidade de sangue colhido em papel de filtro, em geral do calcanhar do RN. Existe a variante, triagem ampliada para erros inatos do metabolismo, que inclui pesquisa para fenilcetonúria, hipotiroidismo, deficiência de biotinidase, fibrose cística, galactosemias, anemia falciforme, deficiência de G-6PD e 20 outras doenças metabólicas que podem causar deficiência mental e que têm sua evolução modificada com o reconhecimento precoce e implantação de terapêutica específica.

Diagnóstico em paciente sintomático

I. Exames gerais: Hemograma, enzimas hepáticas, colesterol e triglicérides, ácido úrico, uréia e creatinina, gasometria, sódio, potássio, creatino-quinase e líquido cefalorraquidiano.
II. Exames gerais, dirigidos ao diagnóstico de erros inatos do metabolismo
• Triagem para EIM no plasma e na urina
• Menu não padronizado de exames, que permite o diagnóstico de um número limitado de condições. Os exames realizados variam muito de um laboratório para outro, e com isso varia também a sensibilidade e a especificidade.
• Ácidos orgânicos, dosagem na urina;
• Amônia, dosagem no plasma;
• Ácido láctico, dosagem no plasma e no LCR;
• Ácido pirúvico, dosagem no plasma;
• Ácido beta hidróxi-butírico, dosagem no plasma;
• Carnitina livre e total, dosagem no plasma e,
• Porfobilinogênio, uroporfirinas, urobilinogênio, coproporfirinas, ácido delta aminolevulínico, dosagem na urina.
III. Exames bioquímicos específicos, dirigidos ao diagnóstico etiológico
• Ácidos graxos de cadeia muito longa, dosagem no plasma;
• Ácidos graxos livres, dosagem plasmática;
• Ácidos graxos totais, plasma;
• Ácido homogentísico, pesquisa;
• Ácido fitânico, dosagem plasmática;
• Ácido pristânico, dosagem plasmática;
• Ácido metilmalônico, dosagem em plasma e urina;
• Ácido orótico, dosagem na urina;
• Ácido pipecólico, dosagem no plasma e na urina;
• Acilcarnitinas, dosagem no plasma;
• Acil glicinas, dosagem na urina;
• Açucares urinários, pesquisa de;
• Aminoácidos, dosagem no plasma e na urina;
• Biotinidase, atividade no plasma;
• Cobre, dosagem no plasma e na urina;
• Ceruloplasmina, dosagem no plasma;
• Galactose 1-fosfato, concentração eritrocitária;
• Galactose-1-Fosfato uridil transferase, determinação da atividade em eritrócitos;
• Galactoquinase, determinação da atividade em eritrócitos;
• Homocisteína, dosagem no plasma e na urina;
• Mucopolissacárides (glicosaminoglicanos), dosagem na urina;
• Transferrina deficiente em carboidrato, dosagem no plasma;
• Oligossacarídeos urinários, pesquisa de;
• Porfibilinogênio deaminase e ácido delta-aminolevulínico desidratase, atividade em eritrócitos e,
• Vitamina E, dosagem no plasma.

Referências

1. Clarke JTR. A Clinical Guide to Inherited Metabolic Diseases. Cambridge, Melbourne, 1996.
2. Blau N, Duran M, Blaskovics ME. Clinical Guide to the Laboratory Diagnosis of Metabolic Diseases. Chapman & Hall, London, 1996.
3. Fernandes J, Saudubray J.-M, van den Berghe, G. Inborn Metabolic Diseases. Diagnosis and Treatment. Springer, Berlin, 2000.
4. Lyon G, Adams RD, Kolodny EH. Neurology of Hereditary Metabolic Diseases of Children, 2nd ed, Mc-Graw-Hill, New York, 1996.
5. Hommes FA (ed). Techniques in Diagnostic Human Biochemical Genetics. A Laboratory Manual. 3rd ed, Wiley-Lyss, New York, 1991.