Leucemia mieloide crônica | Revista Médica Ed. 1 - 2013

Testes moleculares são decisivos para acompanhar o tratamento da doença e, sobretudo, para identificar precocemente falhas terapêuticas e perdas de resposta.

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Cromossomo Philadelphia

Testes moleculares são decisivos para acompanhar o tratamento da doença e, sobretudo,para identificar precocemente falhas terapêuticas e perdas de resposta.

CASO

Paciente do sexo feminino, 57 anos, comerciante, foi encaminhada ao hematologista por apresentar, na avaliação ginecológica de rotina, aumento do baço e leucocitose (102.000 leucócitos/mm3) com desvio à esquerda no hemograma. Ao exame físico, tinha apenas baço palpável a 5 cm do rebordo costal esquerdo, sem outras anormalidades. Para a confirmação da provável leucemia mieloide crônica (LMC), o hematologista solicitou mielograma, biópsia de medula óssea, cariótipo e pesquisa do rearranjo BCR-ABL1 por Rq-PCR.

O mielograma demonstrou medula hipercelular, com relação G:E de 20:1. A série eritrocítica estava hipoplásica, com maturação preservada, e a granulocítica, intensamente hiperplasiada, com predomínio de células maduras, além de discreta eosinofilia e basofilia. Havia hipoplasia da série linfomonoplasmocitária e alguns elementos hipolobulados na série megacariocítica. A biópsia da medula leucemia mieloide crônica.

O resultado do cariótipo com bandas G no aspirado da medula, por sua vez, foi 46,XX,t(9;22)(q34;q11.2)[20], tendo demonstrado, assim, o cromossomo Philadelphia (Ph), derivado da translocação equilibrada entre os cromossomos 9 e 22, que confirma o diagnóstico de leucemia mieloide crônica. Para completar, a pesquisa do rearranjo BCR-ABL1 demonstrou informações importantes para a monitoração terapêutica, como o transcrito tipo e13a2 e uma relação BCR-ABL1/ABL1 igual a 2,9.

O tratamento começou com mesilato de imatinibe (MI)(veja boxe), após a redução da leucocitose com hidroxiureia por 40 dias, e a paciente recebeu estreito seguimento laboratorial para a avaliação da resposta imediata e posterior. Nesse contexto, os métodos moleculares tiveram participação fundamental na identificação de perda de resposta no segundo ano de acompanhamento.

DISCUSSÃO

Seguimento laboratorial do tratamento

A maioria dos pacientes com leucemia mieloide crônica responde de forma excelente ao mesilato de imatinibe, mas alguns indivíduos têm resistência primária ou secundária a essa medicação. Por isso mesmo, todos devem ser avaliados dos pontos de vista hematológico, citogenético e molecular, numa periodicidade que varia conforme a resposta apresentada inicialmente.

O hemograma é necessário a cada 15 dias até que seja atingida a resposta hematológica completa (RHC) e, a seguir, a cada três meses. Já o cariótipo da medula óssea entra em cena depois de três e seis meses, a partir do início do tratamento, e semestralmente, até que se obtenha a resposta citogenética completa (RCC), quando pode se tornar anual. Contudo, evidências de que o paciente deixou de responder ao medicamento ou mesmo a presença de anemia, leucopenia ou trombocitopenia inexplicadas justificam a solicitação desse exame a qualquer momento do seguimento.

Na avaliação medular com três meses, pode-se utilizar a hibridação in situ por fluorescência (FISH), com análise de 200 interfases por meio de sonda de dupla fusão, também indicada quando o cariótipo não é possível, já que pode ser realizada em sangue periférico.

Uma vez constatada a RCC, há necessidade de efetuar o monitoramento quantitativo dos transcritos de BCR-ABL1 por Rq-PCR trimestralmente, até a remissão molecular maior (RMM), e semestralmente, a partir de então.

POR DENTRO DA LMC

A leucemia mieloide crônica é uma neoplasia hematológica clonal, proveniente de uma célula progenitora multipotente. Representa 15% das leucemias de adultos e incide preferencialmente na quinta década de vida, ainda que, no Brasil, a mediana de idade dos acometidos seja menor. A doença evolui em duas ou três fases clínicas. A inicial, ou fase crônica, caracteriza-se por sintomas causados pela anemia e por esplenomegalia. O hemograma demonstra leucocitose com importante desvio à esquerda. Basofilia, eosinofilia e trombocitose podem estar presentes. Se não tratada, em quatro anos, em média, a LMC progride para a crise blástica, com ou sem manifestações de uma fase acelerada. Nesses estágios, as células não se diferenciam, há predomínio de blastos linfoides ou mieloides e os pacientes, em geral, são sintomáticos, com febre, dor óssea, sangramento e sudorese.

Fisiopatologia

A leucemia mieloide crônica deriva de uma translocação entre os cromossomos 9 e 22 – t(9;22)(q34;q11.2) –, uma anormalidade adquirida que justapõe os genes BCR e ABL1. Na maioria dos casos, o gene de fusão BCR-ABL1 resulta na justaposição dos éxons 13 (e13) ou 14 (e14) do gene BCR ao segundo éxon do gene ABL1 (a2), originando os transcritos e13a2 e e14a2, respectivamente. Seus produtos de RNA mensageiro codificam uma proteína quimérica de 210 kDa (p210BCR-ABL ou major-BCR), a mais comum nessa doença. Entretanto, em uma pequena parcela dos pacientes, a quebra ocorre em regiões distintas do gene BCR, dando origem a proteínas com fragmento maior (p230BCR-ABL) ou menor (p190BCR-ABL) do BCR do que o habitual, embora mantenham o mesmo tamanho de fragmento do ABL. Essas proteínas partilham a propriedade de induzir constitutivamente as vias de sinalização intracelular dependentes de tirosinoquinase. Por outro lado, diferenças sutis em seu efeito biológico podem ser cruciais no fenótipo da LMC. Assim, quanto menor a porção do BCR envolvida no rearranjo, maior a agressividade da doença, de modo que a p190BCR-ABL é comum na leucemia aguda e a p230BCR-ABL relaciona-se a formas mais indolentes de LMC.

Tratamento de escolha

Uma vez desvendadas as bases genéticas da leucemia mieloide crônica relacionadas à elevada atividade de tirosinoquinase do gene BCR-ABL1, ficou demonstrado o alvo terapêutico, visto que o rearranjo é a lesão única e o evento patogênico, crítico. Essa descoberta levou à era da terapia molecular alvo-específica, inaugurada pelo mesilato de imatinibe, droga antitirosinoquinase (ATK) liberada para uso em 2001, que se tornou a primeira opção terapêutica para a fase crônica da leucemia mieloide crônica. Seu lançamento mudou a história da doença, com benefício para o aumento de sobrevida. Estão disponíveis, atualmente, medicamentos ATK de segunda geração, como dasatinibe e nilotinibe, que são ativos contra várias mutações resistentes ao mesilato de imatinibe e até têm evidência de superioridade como primeira opção terapêutica, conforme alguns trabalhos recentes.

Tipos de resposta hematológica, citogenética e molecular na LMC tratada

MOLECULAR
CITOGENÉTICA
HEMATOLÓGICA
Completa (RHC)
Normalização do hemograma, com leucometria <10.000/mm3 e plaquetas <450.000/ mm3; ausência de células imaturas, mielócitos, promielócitos ou blastos no sangue periférico, bem como de sinais e sintomas da doença, com desaparecimento do baço palpável
Parcial
Presença dos critérios de resposta descritos acima, porém com células imaturas no sangue periférico e/ou plaquetas >450.000/mm3, mas em número 50% menor que o anterior ao diagnóstico, e/ou persistência de esplenomegalia, mas 50% menor que ao diagnóstico
Completa (RCC)
Ausência de metáfases Ph+
Parcial (RCP)
De 1% a 35% de metáfases Ph+
Menor
De 36% a 65% de metáfases Ph+
Mínima
De 66% a 95% de metáfases Ph+
Ausente
>95% de metáfases Ph+
Completa (RMC)
Ausência de transcritos BCR-ABL1
Maior (RMM)
Redução do RNAm BCR-ABL1 >3 log (0,1% do inicial)*
Mínima
Redução do RNAm BCR-ABL1 em 1 a 2 log (de 1% até 10% do inicial)*
Perda
Aumento do RNAm BCR-ABL1 em 0,5 log (confirmado por análise subsequente)

*De acordo com a escala internacional


Classificação da resposta

Na avaliação de três meses, a paciente já apresentava exame físico normal e resposta hematológica completa, tendo sido mantido o tratamento. No retorno após um semestre, ela estava bem, sem alterações ao exame físico e com hemograma normal, exceto pelo VCM aumentado (secundário ao uso da medicação). Mas o cariótipo evidenciou 46,XX,t(9;22) (q34;q11.2)[2]/46,XX[18], o que configurou RCP, razão pela qual o hematologista prosseguiu com a conduta.

Aos 12 meses de tratamento com mesilato de imatinibe, o exame físico e o hemograma mantinham-se inalterados e o novo cariótipo apontou ausência do Ph nas 20 metáfases analisadas, tendo indicado RCC. A relação BCR-ABL1/ABL1, determinada por Rq-PCR, ficou em 0,9 nesse momento e caiu para 0,05 aos 18 meses, o que representou RMM. Dessa forma, sua resposta terapêutica foi classificada como ótima.

Como o paciente pode responder ao tratamento da LMC

ÓTIMA
SUBÓTIMA
FALHA TERAPÊUTICA
TEMPO
RESPOSTA
3 meses
RHC e pelo menos RC menor (<65% Ph+)
Sem RC (>95% Ph+)
Sem RHC
6 meses
Pelo menos RC parcial (≤35% Ph+)
RC menor que parcial (>35% Ph+)
Sem RC (>95% Ph+)
12 meses
RCC (0 Ph+)
RCP (de 1% a 35% Ph+)
RC menor que parcial (>35% Ph+)
18 meses
RMM
Menos que RMM
Sem RCC
A qualquer momento
RM estável ou em melhora
Perda da RM, mutações com sensibilidade mantida ao MI
Perda de RHC e RCC, mutações com sensibilidade prejudicada ao MI, alterações clonais/Ph+

Fonte: European LeukemiaNet


Manejo da falha terapêutica

Apesar do sucesso inicial do tratamento, a monitoração sequencial do BCR-ABL1 demonstrou, um ano depois, elevação da relação BCR-ABL1/ABL1 para 0,15 e, portanto, perda da resposta molecular. Essa situação constitui uma indicação de realização do sequenciamento do gene BCR-ABL1, a fim de detectar possíveis mutações no domínio da tirosinoquinase que justifiquem resistência aos inibidores da enzima.

Por outro lado, podem ocorrer perdas de resposta decorrentes de resistência secundária, cujos mecanismos mais comuns incluem o surgimento de mutação no domínio da tirosinoquinase do BCR-ABL1, a amplificação desse transcrito, com aumento de sua expressão, e a evolução clonal, com ativação de vias de transformação adicionais. Há várias condutas para contornar essa situação, como a elevação da dose de mesilato de imatinibe ou sua substituição por outra droga ATK ou, ainda, o transplante de células-tronco hematopoéticas (TCH).

Diversas mutações no BCR-ABL1 foram descritas e as que conferem resistência considerada leve às drogas ATK – como M244V, M351T e F359V – podem ser suplantadas com uma dose maior de MI. As mutações 315I, E255K/V ou H396P/R, por sua vez, induzem alta resistência a todos os inibidores ATK disponíveis, tornando o TCH uma opção para tais pacientes.

O que fazer diante de mutação no domínio da tirosinoquinase

MUTAÇÃO
RECOMENDAÇÃO
T315I
TCH
V299L, T315A, F317L/V/I/C
Nilotinibe
Y253H, E255K/V, F359V/C/I
Dasatinibe
Qualquer outra
Alta dose de MI, dasatinibe ou nilotinibe

No caso aqui discutido, detectou-se uma mutação no gene BCR-ABL1, que se mostrou responsiva a inibidores de tirosinoquinase de segunda geração. O fato é que, após seis meses de uso do novo medicamento, a paciente entrou em segunda remissão molecular, mantendo-se clinicamente bem até o momento.

Conclusão

Os recursos moleculares, aliados aos exames clássicos que empregam a citomorfologia e a citogenética por banda G para a definição da conduta nos casos de leucemia mieloide crônica, são essenciais para o tratamento desses pacientes, não apenas por terem propiciado o desenvolvimento da estratégia terapêutica alvo-específica, mas também por integrarem os critérios de classificação da resposta. Possibilitam igualmente acompanhar a remissão da doença, já que detectam, de forma precoce, possíveis falhas terapêuticas ou perdas da resposta e oferecem informações preciosas ao planejamento da intervenção, muitas vezes propiciando a segunda remissão.

ASSESSORIA MÉDICA
Dra. Maria de Lourdes Chauffaille [email protected]